As coisas que nos fazem ser quem somos

Revista Blooks
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4 min readMay 10, 2018
Foto: Taís Bravo

Material de construção

Minhas cabanas da infância eram sustentadas por enciclopédias Conhecer e alguns outros livros pesados. Até hoje tenho, dentro de mim, a sensação da enormidade das estantes de ferro das bibliotecas que frequentei. Livros nunca me foram um espanto, eram material de construção. Por não me serem objetos sagrados, sempre foram rabiscados, molhados e, sem piedade, amassados incessantemente dentro de mochilas. O espanto se deu quando me disseram que livros não foram feitos para serem profanados. Mas veio, então, Adília Lopes, naquela edição bonita de capa azul, para me salvar de meus pecados contra livros. “Acredito na Ressurreição dos livros”, dizia ela, “acredito que no Céu haja bibliotecas”. Cada novo traço, um templo construído em mim.

Estela Rosa

é escritora, poeta e caipira. Teve poemas publicados na revista Grampo Canoa, da Luna Parque Edições, e ainda leva susto ao ler seu nome na capa. Faz parte da iniciativa Mulheres que escrevem e acredita que, se organizar direitinho, todo mundo brilha.

Foto: Victor Prataviera

Elementar, meu caro

Tinha 12 anos quando minha tia-avó Iacy me deu um exemplar de Um estudo em vermelho, do Conan Doyle. Na época, não gostava de ler, mas, por falta de opção, comecei a folhear o livro. Quando percebi, estava investigando crimes, imerso no clima londrino, sem a menor vontade de dormir. Terminei a leitura em êxtase, como só ficamos quando nos deparamos com uma revelação. Antes, meu sonho era ser ator, mágico ou matemático. A partir daquele livro, percebi que tudo o que eu gostava se reunia nos romances policiais. Afinal, escrever um bom mistério tem tudo a ver com atuação (criar personagens e pensar como eles), com mágica (o jogo de mostrar e esconder) e com matemática (criar um esqueleto inteligente para surpreender o leitor ao final). Foi assim que virei escritor.

Raphael Montes

nasceu em 1990, no Rio de Janeiro. Escreveu os romances Suicidas, Dias Perfeitos, O Vilarejo e Jantar Secreto, todos sucesso de público e de crítica, com tradução em mais de vinte países. Atualmente, Raphael assina uma coluna semanal em O Globo e escreve roteiros para cinema e TV.

Foto: Fernanda Sucupira

Sobre palavras ou prazer

Parto de uma confissão indecente: sou um leitor tartamudo, intermitente. Oscilo entre momentos de entrega aos livros, de enorme prazer com o que as palavras oferecem, e momentos de desconfiança e recolhimento, dias e dias em que a literatura parece ter perdido seu sentido e cede sua eloquência ao silêncio. Foi num desses dias de desencanto que tomei nas mãos um livrinho esquálido, quase um conto estendido, poucas dezenas de páginas. Era uma história já antiga, de mais de um século: Bartleby, o escrivão, de Herman Melville. Ali, naquela narrativa simples e breve, redescobri com intensidade inédita o prazer da leitura, a força que podem adquirir as palavras quando alinhadas com diligência. O sentido em si nunca cheguei a redescobrir: a negação imperativa de Bartleby, seu “prefiro não” tão insistente, é dessas afirmações que não se esgotam no tempo, desses mistérios insensatos que nos ocupam a vida inteira.

Julián Fuks

é escritor e crítico literário — apesar das intermitências em ambos os ofícios. Nascido em 1981, é autor de cinco livros, entre eles A resistência, romance vencedor do prêmio Jabuti de melhor ficção de 2015 e segundo lugar no prêmio Oceanos.

Foto: Caio Meira

Sou místico, mas só com o corpo

Quando ingressei na escola tinha 6 anos e uma das vistas tampadas. O início da leitura foi marcado por essa alteração radical da perspectiva. Foi assim, em parte buscando refúgio contra as bolas, em parte porque precisava daquela sensação física de aproximar a cara do livro, sentir seu cheiro e ter que tocar as palavras para ler, que me enfronhei nisso. O susto mesmo aconteceu lá pelos 12 — hoje acho que a adolescência é o período mais metafísico da vida. Eu só queria saber do amor, de entender a morte e de outra coisa que não conhecia o nome. Ganhei do meu pai esse livro lindo (está aqui agora ao meu lado, já sem capa, amarelo e rasgado): Obra Poética, de Fernando Pessoa, Nova Aguilar, 1977. Qual espanto ao ler Alberto Caeiro! A poesia podia, por fim, dizer simplesmente e, no mesmo instante, me arrastar para algo absolutamente desconhecido.

Ana Kiffer

é escritora, professora e pesquisadora no Programa de Pós em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio), autora dos livros Tiráspola e Desaparecimentos [poesia] (Garupa, 2017), A Punhalada [poesia] (Megaminini, 7Letras, 2016), Antonin Artaud (EDUERJ, 2016) e outros que, espero, venham logo. E ainda muitos artigos e coletâneas que já foram espalhados por aí.

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