As coisas que nos fazem ser quem somos
Sobretudo em tempos brutos
Difícil escolher um livro, filme ou produto que tenha mudado de vez a minha vida. Coisas mudam minha vida o tempo todo. O mundo interfere demais quando se está atenta. Sobretudo em tempos brutos. Explicar por que uma obra é impactante pode me tornar impassível à pancada. E talvez tudo se esvazie no caminho. Portanto digo apenas que leria O Verão de 80 todos os dias, se tivesse tempo. E ao menos um poema de António de Sousa, pela manhã. Que Moby Dick arruinou todas as minhas preguiças. Que O Último Tango em Paris revolucionou meu conceito de manteiga, e A Lagoa Azul me ensinou o que é plâncton. E que é, afinal, definitivo ouvir João Gilberto e Clementina de Jesus no mínimo uma vez por semana.
Luana Carvalho
é carioca de coração lisboeta. Compositora e cantora, é editora e colunista do espaço de residência artística virtual CAIS (www.cais.ato.br). É idealizadora e diretora geral da CASA CAIS, na FLIP (parceria: PUC-Rio) e em sua mobilidade por países de língua portuguesa. Já concorreu a melhor canção no Prêmio de Música Brasileira e seu primeiro disco, Branco, produzido por Moreno Veloso, será lançado em 2016.
Inícios
Meu livro é O Estrangeiro, de Albert Camus. Fico com a nítida sensação de que os mais importantes são os mais difíceis de definir. De explicar todo aquele estranhamento — penso em outros dois livros pelos quais sou fascinado, Bartleby, do Melville, e Nos limbos do Pacífico, do Tournier, e vejo agora que conversam entre si. Foi o primeiro livro que me lembro de terminar de ler, fechar, virar e recomeçar. A relação daquele personagem com seu entorno, a consciência, a incapacidade de encenar, o vazio. Estranho, era tudo estranho naquele livro. Não sabia nada quando, moleque, catei-o na estante de casa após ler A Peste (que escolhi pelo título). Sinto ainda a vontade de explorar essa atração enevoante que este livro provoca.
Omar Salomão
é artista, poeta e mestrando em Letras na PUC-Rio. Nasceu no Rio, mora em São Paulo e vive entre cá e lá. Seu site é obomleao.com.
Deslocamentos
Quando nos deparamos com ideias, belezas, sensibilidades, somos lapidados e modificados por esses encontros e embates. Filmes, livros, peças, versos, canções mudaram minha vida, deixando cicatrizes, tatuagens, deslocando meu estar no mundo. Como a descoberta, em Beckett, da impossibilidade de dizer aliada à necessidade de dizer. Um fracasso potente e criador da própria linguagem. Ou os filmes de Cassavetes que ensinam que o tênue limite de nossa lucidez pode se desmanchar diante de um acontecimento insólito, banal. Há também a compaixão do Woody Allen, mais maduro, com a precariedade das pessoas, neuróticas, atrapalhadas, mas cheias de afeto. E a deliciosa canção Cobra Coral, de Wally e Caetano, capaz de produzir, letra e melodia, imensa sensualidade. Mas nada mais libertário que o verso de Leminski: “Distraídos venceremos.”
Isabel Diegues
é diretora editorial da Cobogó. Formada em Letras pela PUC-Rio, atuou como roteirista, produtora e diretora de cinema. Em sua trajetória destacam-se os premiados Vila Isabel (1998) e Marina (2003), dos quais foi roteirista e diretora, e Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz, do qual foi produtora executiva. Como editora, organizou monografias de Adriana Varejão e panoramas sobre as artes brasileiras, além de uma coleção sobre dramaturgia brasileira, dentre tantas outras.
Não era pornô
Em 1999, muito antes do surgimento do WhatsApp, já passávamos o dia compartilhando vídeos. Trocávamos todo tipo de conteúdo por fitas de VHS devidamente rebobinadas e, assim como no WhatsApp, compartilhava-se sobretudo pornografia — ao menos entre os meus amigos. Mas não o mesmo tipo que se compartilha hoje em dia. Garanto a vocês que era mais ingênuo. Mas, ainda assim, era pornografia.
Rafael Queiroga era o cara mais popular da turma de terça-feira do teatro Tablado, da aula da Cacá Mourthé. Eu tinha 13, e ele, 16. Isso fazia dele uma espécie de ancião, portador das novidades do mundo lá fora. E ele tinha me abençoado com a sua amizade. Um dia me deu um VHS surrado de capa muito colorida onde estava escrito: Monty Python ao vivo no Hollywood Bowl. Não parecia pornô. Merda.
Chegando em casa, cheguei à conclusão definitiva: não era pornô. “Isso é muito engraçado. Mas não era pra ser engraçado. Tem alguma coisa errada com isso. Mas eu tô achando muita graça. Acho que é comigo que tem alguma coisa errada.” Eram muitas sensações ao mesmo tempo. Fiquei obcecado. Passei a vida tentando entender por que aquilo me fazia rir.
Passei a perseguir com unhas e dentes essa comicidade estranha que te faz rir sem você saber o porquê.
Gregorio Duvivier
é ator e escritor. Criou o canal Porta dos Fundos e escreve semanalmente uma coluna na Folha de S.Paulo.