Brincadeira é coisa séria

Revista Blooks
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3 min readMay 11, 2018

Texto de Jaciana Melquiades
Originalmente escrito para a Revista Blooks #5

Foto de Adriano Oliveira

Os brinquedos sempre tiveram uma função muito importante em minha vida. Lembro-me de dedicar durante a infância grande parte do meu dia às brincadeiras e à construção de brinquedos. Cresci na Baixada Fluminense numa época em que correr na rua e soltar pipa eram atividades muito comuns (e divertidas). E assistíamos muita televisão também. Uma brincadeira comum entre amigas e amigos era performar programas de TV que passávamos algumas horas assistindo. Cada colega escolhia um personagem do Jaspion ou Changeman, e brincávamos horas a fio salvando o mundo. Personagens esses que dificilmente se pareciam com a gente: é quase imperceptível a barreira sutil que o racismo estrutural vai construindo.

Esses programas tiveram grande papel na formação da minha autoimagem. Foi a TV que me informou sobre padrão estético e sobre padrão de consumo. E a TV brasileira tem um filtro eurocêntrico que vem sendo questionado e modificado muito recentemente. Ela foi responsável por orientar gerações que cresceram referenciadas na branquitude e com nenhuma diversidade expressada nos programas televisivos e propagandas. Sem essa diversidade, brinquedos, personagens, apresentadoras, formaram gerações de pessoas como eu, que se viram pouco ou nunca, nos símbolos que informaram nossas infâncias. É como se as possibilidades de existir no mundo fossem mínimas, com pouquíssimas opções para a pergunta: “O que você quer ser quando crescer?”

Crianças aprendem cotidianamente sobre o mundo a partir do que veem. Ver um mundo completamente embranquecido, sem outras referências, faz com que crianças que estejam fora do padrão estético privilegiado pelos programas criem imagens distorcidas sobre si mesmas. Mesmo os objetos de desejo fomentados e popularizados pelo consumo, desconsideram, ainda hoje, a diversidade. Em um levantamento realizado pela ONG Avante sobre a fabricação de bonecas no Brasil, por exemplo, foi constatado que apenas 3% das bonecas produzidas são negras. Já seria absurdo, mas é ainda mais quando pensamos em uma população como a nossa, que possui pelo menos 54% da população negra e parda, segundo o IBGE. O levantamento nos deixa perceber dados que nos ajuda a pensar (mesmo que superficialmente) o papel da representatividade na construção de nossas subjetividades.

O brinquedo, falando especificamente das bonecas e bonecos que são muito utilizados por crianças em suas brincadeiras, possui papel importante na formação da subjetividade infantil. Ele é capaz de informar a criança sobre possibilidades de ser no mundo e que talvez não estejam presentes no seu cotidiano. Penso na minha infância, no fato de que não cresci vendo médicos e médicas negras, que tive referências de sucesso profissional na trajetória de minhas professoras (que se pareciam comigo) e tive um horizonte de expectativas de futuro construído a partir das experiências mais próximas a mim. Uma boneca negra médica, ou um boneco indígena engenheiro talvez ampliasse meu olhar para outras possibilidades.

A representatividade nos brinquedos pode ser um primeiro acesso à diversidade por permitir a construção de narrativas positivas e de sucesso ao ampliar as possibilidades de ser e, assim, romper as barreiras racistas que são sutis, mas bastante concretas.

Jaciana Melquiades é mãe do Matias, historiadora formada pela UFRJ e empresária. É integrante do Coletivo Meninas Black Power, em que organiza e desenvolve atividades educativas. Atuou nos últimos três anos em projetos educativos na Uerj, promovendo debates sobre saúde, etnia e gênero. Desenvolve brinquedos e livros educativos afrocentrados na empresa Era uma vez o Mundo.

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