Leitura gráfica

Revista Blooks
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7 min readMay 8, 2018

Texto de Cecilia Arbolave
Originalmente escrito para a Revista Blooks #4

Nova geração de editores enxerga o livro como campo de experimentação artística e tem conquistado seu espaço nos circuitos alternativos

Ana Rocha soube que sua amiga de infância Julia Malta anotava conversas com sua filha desde que a pequena aprendeu a falar. Ora poéticos, ora engraçados, os diálogos preservavam a deliciosa espontaneidade das crianças. Rendiam um livro. E renderam nas mãos de Ana, responsável pela editora mineira Polvilho Edições. Para transmitir o espírito das falas, ela elaborou uma fonte tipográfica a partir da caligrafia da própria Maria e criou composições com os desenhos dela. Assim nasceu o delicado Arimin, com uma tiragem de 400 exemplares, capa em papelão com serigrafia e lombada em papel laminado em PVC pink. “Para a impressão do miolo, escolhi a risografia, técnica marcada pela ausência de registros perfeitos, análoga ao traço solto e despretensioso das crianças”, conta Ana.

Há quatro anos ela é parte de uma geração de editores que enxerga o livro como um campo aberto de possibilidades expressivas. São pessoas que experimentam sem medo na escolha das técnicas de impressão, de encadernação, papéis, temas e abordagens. Para Ana, o hibridismo entre autor-editor é frequente nas iniciativas independentes porque muitas foram concebidas por artistas que veem a chance de materializar processos criativos. Com um forte apelo visual, essa produção de arte impressa tem conquistado seu espaço nos circuitos alternativos Brasil afora.

Outra editora que faz parte dessa movimentação é a Pipoca Press, fundada pela francesa Manon Bourgeade e pelo carioca Pedro Lima. “A dimensão sensorial das publicações é muito importante porque permite questionamentos sobre o objeto livro. Precisa ter orelhas e lombada? Precisa ter páginas para virar? Uma folha dobrada pode ter valor enquanto publicação?”, comenta Manon.

Alguns enxergam no ato de publicar um trabalho de resistência. Outros embarcam pelo amor aos livros, ao papel e ao design. E ainda para alguns é uma experiência afetiva e reveladora. Como vários precisam continuar com trabalhos paralelos, no dia a dia fazem malabarismo ao se envolver em todas as etapas do livro (da escolha da obra, edição, diagramacão, impressão, divulgação e até distribuição).

Mergulho na técnica

Um dos aspectos que permitiu essa produção tão polifônica é o acesso aos meios de impressão, que nos últimos anos foi, de certa forma, facilitado. Embora os custos da cadeia do livro ainda sejam considerados altos no Brasil, a impressão digital permite encomendar publicações de tiragens pequenas (menos de cem exemplares, em alguns casos) e as gráficas offset, que usam uma escala maior, hoje já podem se adequar a tiragens de 500. É necessário também um esforço do editor para conhecer melhor de produção gráfica e assim trabalhar possibilidades novas com maquinário convencional.

Na Lote 42, editora da qual faço parte, buscamos explorar o potencial narrativo do projeto gráfico. Os relatos de viagem do livro Queria ter ficado mais, por exemplo, vêm dentro de envelopes, como se fossem cartas enviadas ao leitor. O formato provoca uma experiência de leitura diferente, que está relacionada com o conteúdo da obra.

O acesso a técnicas de impressão eliminou uma etapa do processo de publicar um livro, que era realizada pela figura do editor tradicional, e abriu passagem para que qualquer um possa criar o seu. “Isso é muito positivo, permite que coisas realmente fora do padrão cheguem ao público, em oposição ao que é oferecido pelas grandes editoras, que oferecem conteúdos cada vez mais insossos, sempre em busca de um best-seller”, diz Amir Brito Cadôr, artista gráfico, professor de Artes Gráficas da Escola de Belas Artes da UFMG e autor de O livro de artista e a enciclopédia visual (UFMG, 2016).

A possibilidade de trabalhar com pequenas quantidades — que em muitos casos vem de uma limitação financeira — oferece uma liberdade de criação que o universo editorial convencional carece. Nada impede combinar técnicas industriais com acabamentos artesanais ou se entregar a formas de impressão analógicas, como a tipografia e a xilogravura.

O artista visual Zansky, que se autopublica pela Edições de Zaster, chega a resultados enigmáticos ao desenhar diretamente na tela de impressão da serigrafia. Hannah Uesugi, que tem a Mini Editora, mostra o tanto que a impressora jato de tinta permite: no livro Em branco, ela imprime os mesmos versos em papel vegetal na impressora doméstica e depois passa caneta corretiva em diferentes linhas, criando novas poesias.

Muitos artistas têm trabalhado com risografia, técnica japonesa criada nos anos 1980, em que as artes são gravadas em chapas, enroladas no tambor da duplicadora Risograph, que imprime uma cor por vez. Quem jogou luz a essa técnica no Brasil foi a Meli Melo Press, criada em 2013, em São Paulo. Desde então, surgiram outros estúdios, como Aplicação (Recife), Entrecampo (Belo Horizonte), Selva Press (Curitiba), Estúdio Pilha (São Paulo), Risotrip (Rio de Janeiro) e Edições Aurora (São Paulo).

“A risografia é uma subversão, uma tática de guerrilha. Seu uso para impressão de material artístico só começou na metade dos anos 2000, quando o método se tornou obsoleto e as máquinas usadas começam a ser vendidas a preços muito baixos para artistas”, conta Estelle Flores, da Selva Press. “Os defeitos da risografia foram abraçados como uma estética.”

Distribuição e circulação

“Mas não foi apenas o acesso aos meios de produção o responsável pela multiplicação dos pequenos editores, mas a existência de um circuito de feiras e outros modos de circulação e distribuição associados”, defende Amir. É possível identificar um ponto de partida desta nova geração: a primeira edição da Feira Plana, no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, em 2013, que despertou um interesse massivo, tanto de quem produz como de quem consome. O evento, que em março fez sua quinta edição no Pavilhão da Bienal, catalisou essa produção impressa que envolve artistas visuais, ilustradores, fotógrafos, quadrinistas e escritores.

“Tem gente ainda começando agora e tentando entender como fazer, e essa é a parte legal de não fazer parte de um sistema maior: poder testar e ver o que acontece”, diz Bia Bittencourt, organizadora do evento e que em 2016 criou a Casa Plana. “Luto pela pesquisa e pelo conteúdo e é por isso que abri esse espaço, que fomenta o estudo, o rigor e a seriedade para sairmos um pouco do plano das expectativas e sabermos mais o que estamos fazendo.”

As feiras são essenciais para os editores, pois além de ser um momento de venda (que muitas vezes banca as publicações seguintes), possibilita a comunhão direta com o público e ainda a troca de experiências com outros artistas. Esses eventos se espalham pelo Brasil e vem conquistando novos pontos. A feira Tijuana, que teve sua primeira edição em 2009 na capital paulista, chegou ao Rio de Janeiro em 2016 e já fez outras edições em países latinoamericanos. Na Miolo(s), organizada pela Lote 42 desde 2014, os participantes são incentivados a doar livros para o acervo de publicações independentes da Biblioteca Mário de Andrade. Em Porto Alegre, a Parada Gráfica já fez quatro edições; em Florianópolis, o Parque Gráfico encara a segunda; e Salvador este ano hospedará a Feira Ladeira e a Baía Gráfica.

Existem livrarias que têm dado atenção a essa produção, como a Blooks, que aposta em editoras pequenas, mas também surgiram iniciativas fora dos espaços convencionais. No Rio de Janeiro, A Bolha Editora criou um espaço fixo em Botafogo e também o projeto itinerante A Bolha Móvel, em que um carrinho de sorvetes percorre as ruas vendendo livros. “É o nosso jeito de dizer que existem outras maneiras menos sisudas, leia-se menos recatadas, mais orgânicas, de se expor, de se pensar no fator da acessibilidade de um trabalho como publicação”, diz Rachel Gontijo Araújo, que está à frente da editora. Em São Paulo, a Banca Tatuí, criada pela Lote 42, distribui o trabalho de mais de 160 editoras e artistas independentes não só no ponto físico, mas também pela loja virtual, com entrega em todo o país.

Mesmo com o acesso aos meios de produção e a multiplicação de feiras, ainda existem dificuldades. “É preciso criar estrutura para que se mantenha a produção e quem quiser possa se tornar profissional, ou seja, viver disso”, defende Amir Brito Cadôr.

Bianca Muto, da Pingado-Prés, reflete: “Produzir 100 livros não é a mesma coisa que produzir 1000. Sabemos que será só na quantidade que iremos conseguir tornar a editora sustentável, porém nos questionamos: conseguiremos e, ainda mais, queremos ou almejamos ter esse porte? Como captar verba para produzir uma quantidade maior, e depois como administrar tudo isso? Como manter nosso diferencial gráfico, sem elevar custos? Seguimos nesta busca em achar equilíbrio e espaço dentro do mercado editorial.” É acompanhar para ver como dúvidas como essas serão resolvidas.

Cecilia Arbolave é editora e sócia da Lote 42. Organizou o livro de histórias de viagens de mulheres Queria ter ficado mais, para o qual escreveu o capítulo de Buenos Aires, sua cidade de origem. Também coordena a Banca Tatuí, espaço de publicações independentes, e organiza a feira Miolo(s), na Biblioteca Mário de Andrade.

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