Manufatura urgente

Revista Blooks
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3 min readMay 6, 2018

Texto de Mana Bernardes
Originalmente escrito para a Revista Blooks #1

A mão é a extensão direta do pensamento em todas as civilizações para todas as construções e em todos os tempos. A manufatura tem alma, a caligrafia é a partitura da emoção, e o cafuné é a verdade da ponta dos dedos — salve tudo que não é padronizado!

Vivemos uma fase radical de padronização: das letras, dos corpos, dos tons de cabelo, das comidas (claro que nesses momentos em que a coisa chega ao limite é que os movimentos de oposição surgem numa celebração de autênticos).

Somos ensinados a padronizar, a repetir, a entrar na forma, a desaprender do traço livre da infância a cada dia até morrer. Detalhe: aprender significa não prender.

Não tem nada mais angustiante do que saber que a profissão de que também faço parte, a de designer (tão padronizada que tem nome em inglês) é bastante responsável por essa padronização em massa, e não me excluo dessa, faço disso um exercício contínuo de esquiva.

Aos poucos percebi que a manufatura básica e ancestral de costurar, tecer, tramar, desenhar, cozinhar, cafunezar, bordar, esculpir é a própria despadronização, porque revela a identidade de cada pessoa. O gesto. A pegada.

A manufatura mais comum, mais usada por todos é (ou era) a caligrafia, tudo era escrito à mão, toda a comunicação por bilhete, carta, lista, planilha. Chamaria a caligrafia de manufatura mais universal. E esta extensão tão direta do sistema motor, da mão, da emoção, dos símbolos próprios de cada um está em extinção. E é mais grave que isso: as crianças de uma maneira geral acabam se alfabetizando digitalmente, por máquinas sedutoras e luminosas. E isso inclusive passará a ser regra de estado. Aliás, os Estados Unidos já anunciaram o fim do ensino da letra cursiva como primeiro passo.

Isso não só compromete o sistema motor que a partir do espaço do papel faz da letra um desenho e um tempo próprio. Isso compromete a liberdade de ter a mão como extensão direta do pensamento para a realização.

Aos poucos escolhi assumir a manufatura por um único motivo: despadronizar. E fazer disso minha função política e social para encorajar as pessoas.

Com a manufatura aprendi muito sobre o tempo. Por isso projeto processos, desenho etapas e deixo o objeto como consequência, não como princípio. Eu me considero mais designer de processos do que de objetos.

Somos totalmente acuados de encarar a manufatura, somos porque o mundo atual nos oferece tudo cada vez mais pronto. Em um tempo que não é nosso. Numa velocidade eficaz a ponto de nos desumanizarmos da delícia de encarar a bancada da cozinha, o cafuné, as cartas, bilhetes, desenhos, códigos próprios.

E o quanto a pressa nos arranca de viver o tempo real que só as mãos sabem que as coisas devem ter?

Mana Bernardes é artista plástica, poetisa, designer de joias, educadora, escritora, ativista social, cozinheira, iogue, budista, Escorpião com ascendente em Touro e Lua em Áries. Mana significa energia vital.

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