Marielle — Sobre as mulheres negras faveladas e a mobilidade urbana

Revista Blooks
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3 min readMay 8, 2018

Texto de Marielle Franco
Originalmente escrito para a Revista Blooks #4

Marielle Franco — Foto: Divulgação

Fiz minha graduação na zona sul do Rio. Acostumada a circular pela zona norte, entender as linhas de ônibus da zona sul não era fácil. Muitas vezes fiz baldeações desnecessárias, ou gastei mais tempo e dinheiro de um destino ao outro, porque não havia informação de rotas e alternativas. Somado a isso, o alto custo, a má qualidade do transporte (que já me obrigou numa ocasião a empurrar um ônibus), o medo do assédio e da violência impuseram muitos desafios.

É muito comum assistir um especialista em transporte e mobilidade que fale sobre capacidade, velocidade e tecnologia. A maioria deles são homens brancos, bem formados, acostumados a uma abordagem associada à eficiência. Mas e a perspectiva democrática? Fica muito difícil tratar o problema se não priorizamos a mobilidade como possibilidade de promover o acesso à cidade, sobretudo, quando o foco são as mulheres negras faveladas.

As nossas metrópoles são gigantescas e diversas. As oportunidades de locomoção e acesso ao trabalho, à cultura e à arte, ao lazer, aos serviços deveriam ser inúmeras, mas não é bem assim. As cidades têm sido mais hostis conosco, limitando cotidianamente o direito a circular por ela. Isso dificulta nossa mobilidade objetivamente e simbolicamente.

Para ilustrar, em pesquisa realizada em diversas capitais pela ActionAid em 2013, o ponto de ônibus foi considerado o lugar mais inseguro para 91,1% das mulheres entrevistadas na favela, onde sou cria, o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Mas isso não é apenas uma realidade carioca. Em seis cidades pesquisadas, 77% das mulheres têm medo de esperar o ônibus. A má qualidade da iluminação pública e dos espaços de circulação e convivência torna o simples ato de ir e vir um ato de resistência.

Ao mesmo tempo, quando olhamos a localização de equipamentos culturais, estes estão distantes das favelas ou são de difícil acesso — seja pelo alto custo e pouca oferta de transporte, seja pelos grandes intervalos e limitação de horários aos fins de semana. É como se nos dissessem que não temos direito à cultura e ao lazer e de usufruir das possibilidades de existir para além da moradia e do trabalho.

A política de transporte para as favelas tem servido mais a uma pirotecnia politiqueira, como é o caso dos teleféricos no Complexo do Alemão e na Providência, do que contribuir de fato para a qualidade de vida nestas favelas. Não é por acaso que os mototáxis são uma alternativa importante de mobilidade nas favelas cariocas. O prejuízo ainda é maior para mulheres faveladas chefes de família. De acordo com o IBGE, grande parte delas reside em áreas mais precárias e assim mais sujeitas às dificuldades de acesso e mobilidade, notadamente em favelas fincadas nos morros da cidade.

Marielle Franco é cria da favela da Maré. É socióloga formada pela PUC-Rio e mestra em Administração Pública pela UFF. Coordenou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), ao lado de Marcelo Freixo. É recém-eleita vereadora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo PSOL, com 46.502 votos.

8 de maio de 2018
Marielle escreveu esse texto para a nossa revista, que foi lançada em abril de 2017. Faz pouco mais que um ano e ela havia sido eleita para o cargo de vereadora da cidade do Rio de Janeiro. No último dia 14 de março, uma quarta-feira, fomos surpreendidos por sua brutal execução, juntamente com seu motorista, Anderson Pedro Mathias, em plena região central da cidade. O crime ainda está sob investigação mas esse texto e muitos outros que ela produziu, seu trabalho na câmara e nas comunidades e favelas cariocas, mostram que sua luta segue viva e cada vez mais importante.
#MariellePresente
#AndersonPresente

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