O provocante fascínio da escrita de João Tordo

Revista Blooks
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7 min readMay 11, 2018

Texto de Fabiane Pereira
Originalmente escrito para a Revista Blooks #5

Foto: Divulgação

Foi de uma rua relativamente pacata no bairro da Lapa, com nome bíblico, cortando a movimentada Infante Santos, no coração de Lisboa, que saiu o livro que mais vezes li em minha vida: o arrebatador Biografia involuntária dos amantes escrito pelo português João Tordo, que acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Arrisco-me a dizer que João Tordo é o mais brilhante dos escritores portugueses da chamada nova safra.

“Comecei a escrever as primeiras histórias logo que fui alfabetizado. Gostava de desenhar, então comecei pelos livros de quadrinhos. Por volta dos 12 ou 13 anos, minha mãe e meu padrasto me levaram a uma feira de livros, em Lisboa, e lá foi a primeira vez que tive contato com os livros que eu queria comprar. Na ocasião, quis livros de quadrinhos, mas meu padrasto insistiu e comprou alguns clássicos russos que ficaram guardados até meus 14, 15 anos. Foi nesta idade que li Crime e Castigo e este foi o primeiro romance que li e pude compreender que tinha uma parte da minha vida que ficava muito satisfeita quando lia um livro daquele tipo. Foi a primeira vez que tive contato com um romance como forma de expressão e que compreendi o poder da literatura”, relembra João que, hoje, aos 41 anos, é autor de dez romances e sua escrita destaca-se por ser uma narrativa ímpar da literatura contemporânea.

Há três anos, ganhei de uma amiga portuguesa o livro que este mês chega às livrarias de todo o Brasil. Impactada com aquela narrativa, li suas quase 400 páginas em menos de vinte e quatro horas devido a uma escrita interessante, bem amarrada e fluida. Na manhã que concluí a primeira leitura, procurei informações sobre o autor no Google e, numa busca rápida, descobri que João Tordo já tinha em sua biografia a conquista do prestigiado Prêmio José Saramago, em 2009. Na ocasião, fiz o que a maioria das pessoas faz quando se identifica com um escritor: comprei todos os seus livros lançados até então.

Com quatro livros lançados no Brasil (As Três Vidas, O Bom Inverno, Anatomia dos Mártires e, o recém-lançado, Biografia involuntária dos amantes), seu registro discursivo é tão fluente que muitas vezes torna-se cinematográfico e, talvez, por isso João também seja roteirista de TV e no segundo semestre, em parceria com dois amigos escritores, vai lançar uma série na TV portuguesa inspirada nas relações Brasil-Portugal, já intitulada País Irmão.

Biografia involuntária dos amantes é um romance magistral sobre amor, desejo, obsessões e cicatrizes que acumulamos durante a vida. “Eu compreendo melhor a mim quando escrevo”, afirma o escritor que vem construindo sua obra no silêncio e não no estardalhaço das redes sociais. “Só tornei-me conhecido do público quando estava prestes a lançar meu quarto romance e durante muitos anos escrevi sem publicar, isso me trouxe segurança e não uma necessidade de aprovação instantânea”, completa João.

No livro, dois amigos atropelam um javali numa estrada na Espanha. Enquanto resolvem os trâmites burocráticos, um dos protagonistas, o poeta mexicano Saldaña Paris, pede ao companheiro de viagem, um professor universitário, que leia um manuscrito deixado por Teresa, sua ex-esposa e grande paixão de sua vida. A partir dessa trama de personagens, a mulher narra suas memórias e relembra seus medos e sonhos. Aliás, a narrativa na voz feminina pode ser encontrada em outros livros de João e é um dos grandes trunfos de sua escrita. Assim como no livro, os manuscritos se mostram capazes de sensibilizar não apenas os personagens, mas também o leitor.

Eis que, este ano, passando por uma temporada em Lisboa, convidei João para um café, receosa de que tal aproximação me fizesse perder o encanto pelo autor — aprendi que, na vida, não se deve nunca conhecer as pessoas que admiramos. Muitas pessoas geniais que conheci se preocupavam tanto em serem geniais que acabavam por não serem pessoas. Conheci João mesmo assim e descobri que João é dessas pessoas que emprestam o gênio pra vida e tratam as relações interpessoais como quem trata um disco ou um livro. Foi inevitável: fiquei ainda mais encantada à revelia do talento dele.

Dito isso, convido vocês a conhecerem um pouco mais de João Tordo por algumas das suas frases impressas em seus quatro livros lançados no Brasil. Depois de lê-las, apaixonar-se por sua obra é só uma questão de tempo.

A primeira frase do livro As Três Vidas (vencedor do Prêmio Saramago) afirma que “o mundo se apresenta como um espetáculo enfadonho e miserável”.

Difícil de comentar — acho que está relacionada com o estado de espírito da personagem que conta a história, e do fato de, quando o livro começa, a personagem se encontrar num período da sua vida complicado, com o passado ainda em “carne viva”. Enquanto João, fora do âmbito do autor, acho o mundo um espetáculo incrível e com grande entretenimento. O contrário, portanto.

Ainda em As Três Vidas, há uma frase que diz: “Repórteres têm um defeito de profissão: abordam de maneira petulante e lisonjeira.”

Essa frase não é a minha opinião, mas a da personagem do livro. Eu fui jornalista, em tempos, e julgo que a profissão carece de uma determinação muito própria e inabalável de procura dos fatos. Mas a verdade e os fatos são duas coisas diferentes. Aliás, parece-me que o papel do escritor é dar um passo atrás e tentar compreender a motivação e o sentido oculto por trás dos fatos. Daí que, muitas vezes, os jornalistas abandonam o seu papel inicial e se aventuram na interpretação desses mesmos fatos. Pode ser um defeito de profissão, mas acaba sendo o mais importante, porque o espírito humano alimenta-se de histórias, de sentido, e não de fatos.

Na página 81 (As Três Vidas) há o seguinte questionamento: “O que gera o livre pensamento? A dúvida. O que gera a dúvida? O pensamento livre. O que é que nós estamos aqui a fazer? A pensar.” O que João Tordo está aqui a fazer?

Estou a tentar fazer sentido da minha vida por meio dos livros que escrevo. As minhas personagens são vozes às quais eu vou dando atenção em alturas específicas — todos temos esta capacidade de ouvir essas pessoas dentro de nós. São os nossos pais, os nossos familiares, irmãos, amigos. Gente viva e morta que continua a sussurrar dentro de nós. Quando prestamos atenção, essas vozes têm histórias que precisam ser contadas, têm dores e sofrimentos, alegrias e angústias, e o que um escritor faz é dar ouvidos a essas vozes para que elas não caiam no esquecimento. Um dia alguém escreveu que a literatura é resgatar os mortos, e eu concordo.

Se você tivesse em mãos o soro da verdade, daria a quem e por quê?

Daria a mim próprio, para que pudesse compreender quem sou. Ou estou muito enganado, ou a nossa capacidade (a minha) para o autoengano e a autoilusão é imensa. Desta maneira, e como escrevi num livro, uma vez, se a verdade está no interior do homem, também está a cortina que a oculta. O soro da verdade abriria esta cortina para o interior de mim mesmo.

Anatomia dos Mártires — outro de seus livros que gira em torno da obsessão — fala de uma época recente, porém nos parece muito distante por conta de todo avanço provocado pela grandiosa revolução tecnológica. No mundo de hoje, há espaços — cartesianamente falando, ou seja, desprovido de utopias — para os mártires? Sejam eles: “salvadores da pátria”, políticos, religiosos ou algo/alguém que reúna estas três vertentes?

Claro. O mundo islâmico radical, que passa por uma espécie de Idade Média, encontra mártires com enorme facilidade. São os que morreram no 11 de Setembro, por exemplo, de um lado e do outro; mas também são os que morrem diariamente na Síria, no Iraque, na Tunísia, na guerra de drogas no México etc. Onde quer que alguém morra por decreto de um sistema político, religioso ou econômico, existem mártires. Podemos é não estar tão atentos, mas eles estão aí.

Em Biografia involuntária dos amantes, um dos seus protagonistas diz: “Nunca se encontra o amor porque ele não é passível de ser encontrado. Não nos acontece quando queremos, mas quando estamos distraídos ou adormecidos.”

Sim, acho que faz sentido. O desejo e a inquietação humana — a permanente insatisfação de existir — encontra o seu expoente mais elevado na procura do amor. Seja ele romântico ou fraternal, ou mesmo divino. O curioso desta vida é que a procura não corresponde ao encontro, pelo menos num sentido espiritual: as coisas acontecem-nos quando abandonamos a obstinada sede de as perseguirmos. Tem sido sempre assim, e apanha-nos distraídos, quando essa inquietação se encontra dormente.

“O ser humano está tão próximo, mas é completamente desconhecido.”

Pronto, é o mesmo que falamos até agora. A proximidade dos outros dá-nos uma enorme dádiva, mas também nos traz uma ferida antiga, que é a da existência. É por meio dos outros que nos conhecemos, mas também é por meio deles que nos ocultamos. É quase contraditório. Portanto o outro está próximo de mim, à distância de uns passos ou de um telefonema, mas continua a ser um território desconhecido, no qual entramos sem mapa, sem roteiro.

O Bom Inverno fala sobre escritores e seu processo, na maioria das vezes solitário, de escrita. Como é sua rotina de escrita? Você precisa se retirar do mundo (cotidiano) para mergulhar em uma história?

Normalmente reservo alguns meses por ano para escrever. Três ou quatro, dedico-os só à escrita de um livro. Acordo todos os dias cedo e escrevo cinco, seis horas. Depois não penso mais no assunto até o dia seguinte. E vou acrescentando palavras, frases, parágrafos, até a primeira versão de um manuscrito ficar pronta. É conveniente sair um pouco do cotidiano, sim — ir para outro lugar, mudar a rotina, encontrar uma nova rotina com a escrita. E assim o mergulho fica mais fácil.

Fabiane Pereira é jornalista, sócia da Valentina Comunicação — empresa voltada para criação, divulgação e produção de projetos musicais — , escritora, apresentadora, roteirista, produtora cultural e apresentadora do programa de rádio Faro MPB.

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