O que o som de um cabelo pode nos ensinar sobre cinema e racismo
Texto de Yasmin Thayná
Originalmente escrito para a Revista Blooks #2
Dia desses tive a oportunidade de estrear um filme em Salvador, na Bahia. Era uma sexta-feira do mês de janeiro, verãozão daqueles. Foi lá no Engenho Velho de Brotas, no Solar Boa Vista. Gente de todos os tipos e idades, predominantemente negra. O Brasil que pulsa estava ali, querendo assistir KBELA, um filme sobre ser mulher e tornar-se negra. Eu suava frio, como acontece com boa parte dos artistas quando sabem que a casa teve lotação máxima e que voltou gente pra casa.
Fiquei tranquila pós-filme, no bate-papo, quando uma menina negra baiana pegou o microfone e deu um depoimento que, em poucas palavras, dizia o seguinte: “Eu nunca achei que um dia escutaria num filme o som de um cabelo crespo sendo penteado.” Ela nunca imaginou ouvir o mesmo som que escuta todos os dias antes de sair de casa. O som que vem de uma raiz que sempre lutou por um país de todos, essa raiz que está sempre com força e fazendo barulho nesse país. Pertencimento, se ver, se ouvir: foi disso que essa menina negra falou. Naquele dia tive a certeza de que fazer cinema era coisa muito séria, pois certas escolhas podem afetar a vida de maneira que você não imagina. Para o bem e para o mal.
Ouvir ou ver um cabelo sendo penteado no cinema não é exclusividade minha, nem do KBELA. Mas conseguir dizer dez nomes de filmes brasileiros em que escutamos o som de um cabelo crespo sendo penteado pode ser um desafio. E estou falando do Brasil, onde a maioria é negra. É por causa desses atravessamentos do dia a dia que me pergunto: que produção de imagem, pertencimento e sentido, que noção de identidade são essas que a gente tem criado no país? Quem faz? Quem representa? Quem representa o que, quando e onde? Quem conta a história? Quem tem direito à memória?
Os profissionais do enquadramento (jornalistas, publicitários e cineastas) têm nas mãos a ferramenta mais poderosa da política, considerando como política todas as nossas relações no contexto coletivo, em sociedade, e no nosso convívio particular. A imagem, principalmente em produtos audiovisuais (novela, cinema etc.), tem um papel fundamental na criação de imaginários: ao mesmo tempo em que a comunicação, a criação de imagens no geral, pode mudar toda uma percepção sobre um grupo social, pode, também, destruir. E considerando que o cinema foi um meio muito importante para tornar negativa a imagem do negro, vejo como urgente a criação de outros imaginários sobre as pessoas negras no Brasil.
Uma artista e designer de que eu gosto muito é a Diane Lima. Ela faz a seguinte pergunta: criar ou ocupar novos espaços? Eu acho essa pergunta muito boa para pensarmos várias coisas, inclusive o cinema. O modo como o cinema opera é elitista. Mas a gente não pode deixar de notar que está rolando uma mudança. As novas narrativas e os novos narradores estão vindo com ou sem apoio das políticas públicas. E eu acho que é isso que vai forçar uma mudança significativa na política e no modo como o cinema é feito no Brasil. Gerar oportunidade não é colocar um branco com a cara pintada de preto na novela, no programa, no teatro. E sim convidar essas pessoas negras para serem roteiristas, para estarem em papéis na novela como engenheiros, executivos, artistas. É fazer o esforço básico de construir a imagem de um Brasil do século vinte e um: com pessoas negras, que somam apenas mais da metade da população, nas equipes e em cargos de liderança, e não só para servir o café e limpar a sujeira.
É por isso que eu acredito: fazer filme não tem nada a ver com tapete vermelho. Isso é firula inventada por quem gosta de vitrine e perfumaria. Fazer filme é fazer política. Não é close, é trabalho, é batalha, é luta. É isso que fazemos. Sejamos responsáveis!
Yasmin Thayná é cineasta, diretora e fundadora da plataforma de conteúdo audiovisual AFROFLIX, curadora da FLUPP (Festa Literária das Periferias) e consultora de audiovisual no Instituto de Tecnologia e Sociedade. Dirigiu e escreveu os longas KBELA e BATALHAS e fez a direção da série AfroTranscendence.