Orixás Urbanos — Os arquétipos entre nós e seus ensinamentos ancestrais.

Revista Blooks
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12 min readMay 8, 2018

Texto de Joice Berth | Fotos de Antonello Veneri
Originalmente escrito para a Revista Blooks #3

“Eu fui com Pierre Fatumbi a Bahia. Quando cheguei lá eu vi todos os Orixás de Ketu. Tinha Xangô. Tinha Oiá. Tinha Oxóssi. Tinha Iemanjá, Oxum. Todos habitando a Bahia.”
Pai Agenor de Miranda

A África desperta nos brasileiros sentimentos diversos e antagônicos de identificação e atração, de negligência e fascínio, de carinho e repulsa. Esse antagonismo é, a um só tempo, regido pelo forte racismo que aqui se camuflou confortavelmente sob o mito da democracia racial, em contraponto à ancestralidade inevitável que se espalhou juntamente com a dolorosa mestiçagem que formou o Brasil de hoje. Esse continente e sua cultura misteriosa, e por vezes distorcida, estão presentes em nossa música, em nossa linguagem, em nossa culinária, em nossas danças e até mesmo na literatura produzida a duras penas.

Sabemos pouco sobre as raízes que os escravizados fincaram aqui. Os registros não dão conta de resolver todas as dúvidas que a diversidade herda e desperta. Esse cenário aliado à rejeição e a um comportamento fortemente fundamentado na soberba adquirida ainda no período colonial, faz com que ao redor de tudo que seja africano formem-se conceitos distorcidos e preconceitos até intencionais.

Os grandes anfitriões que abrem as portas da curiosidade humana e que apresentam um mundo cujo sentido da palavra diversidade é exercido naturalmente são os míticos e místicos Orixás. Pouco compreendidos se analisarmos pelo olhar da razão canônica de grandes pensadores, mas sentidos de forma contagiante e quase sempre irreversível, os Orixás seguem dando as mais preciosas pistas filosóficas do comportamento dos povos tradicionais da África negra.

Mas o que seriam essas divindades que, segundo as lendas passadas de geração em geração, tanto se assemelham às mesquinharias das personas humanas, manifestando também um lado mundano, o que é contraditório à moralidade cristã vigente e praticada em todo nosso território? A etimologia da palavra nos dá pista preciosa da relação que essas divindades estabelecem em nossas vidas: Orixá = Ori + xá — Dono, força ou luz da cabeça.

Nossa forte presença eurocêntrica que pauta as manifestações religiosas oficiais não toleram a dualidade e muito menos a humanização de divindades. Mas na filosofia das religiões tradicionais africanas, o forte vínculo e a livre atuação das divindades em nossas vidas só são possíveis porque eles se humanizaram em algum momento de sua história, compreendendo e assimilando por empatia as incongruências da essência humana, rompendo a dualidade bem/mal presente nas religiões europeias e abolindo a hierarquização entre as pessoas.

Os Orixás nos dizem que só podemos saber profundamente dos efeitos nocivos ou positivos de nossas ações e prever o que deve ser exaltado em benefício do todo, quando nos colocamos no lugar que o outro ocupa. Todos são importantes e necessários para a manutenção do mundo, tudo é exaltado e cultuado igualmente, todos possuem responsabilidades e devem estar à disposição do bem coletivo.

Esse legado, que vai muito além do campo religioso, de alguma forma emoldurou nossa sociedade com sua beleza e mistérios que desde então fascinam e cativam a todos que estão dentro ou fora das religiões de matriz africanas. De acordo com a filosofia contida nas religiões que cultuam os Orixás, somos enquanto seres encarnados, a continuidade dos seus mistérios. Essas divindades moram em nosso interior e, conscientemente ou não, nossas escolhas, nossos gostos pessoais e até nossos desafetos são traçados pela energia desses seres encantados que recebemos quando nascemos e nos acompanham durante nossas vidas.

Intolerância religiosa ou racismo aplicado a religiões de origem negra?

O censo do IBGE informa que apenas 1,5% da população é adepta aos cultos de matriz africana. O que deixa o questionamento no ar, quando anualmente, no réveillon, muitos brasileiros se agrupam em frente ao mar para oferecer flores à grande matriarca de origem iorubá ou ainda na movimentação nas festas de dois ibejis, sincretizados nas figuras católicas dos médicos gêmeos Cosme e Damião.

Embora o Brasil se considere um país laico, as religiões de matrizes tradicionais africanas carregam um rastro de perseguição histórica, pouco presentes em outras religiões como as de origem oriental, por exemplo. Falamos em intolerância, mas na verdade é uma expressão do racismo presente em nossa sociedade que faz com que tudo que seja ligado a pessoas negras e suas origens seja tratado com desconfiança e distanciamento.

Sandra Priscila Santos/Iemanjá, uma das blogueiras mais influentes e empoderadas de Salvador, dona do blog Gordinhas Lindas da Bahia.

Sementes de Olodumarê na Terra

Parece que a religião dos povos tradicionais do continente africano é politeísta, mas na verdade os Orixás seriam manifestações de alguma face de Olodumarê, o dono do universo, incumbidos da árdua tarefa de “construir” o mundo.

Oxalá, o mais velho e respeitado deles, representa as pessoas que assumem para si grandes responsabilidades sociais, são aqueles que lideram, indicam caminhos, com a serenidade constante de quem sabe todos os perigos e como dominá-los. É a pessoa que teme falhar, porque sente em seus ombros o peso da responsabilidade de orientar tudo e todos, para que nada seja desperdiçado e nem perdido, para que todos os seres humanos sejam equilibrados nas escolhas, como eles são. Andam curvados com o peso da vida, sua e dos outros, mas não delegam as responsabilidades que tomam espontaneamente para si. São as pessoas que amam o próximo e sofrem com e por ele. Aquelas personalidades austeras, que quase nunca se permitem à diversão, aos prazeres, às futilidades, às vaidades.

Oxalá é o pai, o chefe, o professor, o padre, o pastor, o babalorixá, o político ou qualquer outra representação que se posicione à frente, como orientador terno, pacífico, mas exigente e sério nos propósitos sempre elevados, nunca mundanos. O mundo, sem os filhos de Oxalá, seria individualista e pouco comprometido com a união e a concretização da paz, estaria entregue a vaidade e não reconheceria a necessidade de se cultivar a humildade, qualidades abundantes nessas pessoas. Aqui não falo sobre o fetiche pela pobreza e pela miséria que a soberba de alguns nomeia como humildade, mas sobre aquela manifestação do sentimento de igualdade, porque todo Oxalá urbano, assim como a divindade, sabe que perante Olodumarê temos todos o mesmo valor.

Encontramos nos meios urbanos, e com certa facilidade, a docilidade voluntariosa da mãe de todos os Orixás, Iemanjá, nas grandes chefes de família, que assumem com coragem a tarefa de manter um lar unido e fortalecido. Yèmoja ou Yèyé omo eja, mãe cujo os filhos são peixes, também tem forte vínculo com a educação de seus filhos, mas não necessariamente a que se aprende na escola, mas aquela indispensável que prepara para a vida. Com imponência, a mãe d’água mostra às suas filhas que a beleza é de dentro para fora e que os padrões estéticos que definem a imagem que devemos aceitar são pautados pela cegueira do preconceito presente nos quatro cantos do mundo. Elas são belas e sua beleza nasce da força de quem se orgulha de ser quem é.

As imposições estéticas da contemporaneidade, que excluem mulheres negras, indígenas, gordas, trans, ou seja, aquelas belezas espontâneas que contrariam o desejado pelo imaginário impregnado de conceitos eurocêntricos, moldaram a imagem clássica da Iemanjá branca, de longos e lisos cabelos, de corpo ampulheta, ligeiramente sensualizado, cuja única semelhança com a poderosa matriarca africana que leva o nome de um rio — rio Iemonjá — é nos fartos seios, não por acaso símbolo da maternidade provedora que também representa a divindade iorubá.

Mestre Glausser/Oxóssi, depois de um período morando nas ruas e no mato da cidade, voltou a dar aula de capoeira e a cuidar dele.

Pelos espaços urbanos também circulam aqueles homens guerreiros, carismáticos, cheios de sonhos, destemidos, galanteadores, apesar de inconstantes, porque têm sede de vida, jovens, senão de idade, de espírito, alegres e curiosos, desbravando cada canto da cidade como se fosse uma grande descoberta. Estão nos saraus declamando ou ouvindo poesias, estão nas galerias de arte se expressando e lidando por esses caminhos, buscando o entendimento de si mesmos e do mundo que os cercam, estão nos palanques da política articulando estratégias para libertar pessoas das velhas ideias e ideais, são como na canção do Raul essa “metamorfose ambulante”. Mudam e querem acompanhar de perto a mudança do mundo. São os representantes de Oxóssi, o rei das matas, protetor da natureza, caçadores incansáveis de novidades e conhecimentos que possam ser úteis para si e principalmente para a humanidade.

São os cientistas, pesquisadores e estudiosos que desvendam os mistérios do conhecimento, mas apenas se forem úteis ao próximo, porque Oxóssi é do mundo e o mundo é de Oxóssi. Para essas pessoas o alimento é tão vital quanto o ar que rege suas vidas e dividir é fundamental. Desde sonhos, expectativas, ilusões, tudo só é porque pode ser de todos. No Brasil esse Orixá foi associado aos indígenas, devido ao modo livre e descomplicado com que se articula no mundo e a necessidade de viver em comunidade. Os descendentes da divindade que protege e briga pela sobrevivência rompem barreiras, questionam e quebram regras, amam e esquecem com a mesma facilidade, porque o que mais prezam é sua liberdade de ir, vir e ser.

Nossos médicos, curandeiros, rezadores, xamãs, nutricionistas, psicólogos e todos aqueles que de alguma forma sentem o impulso inevitável de lidar com a saúde alheia e com a própria, são as representações urbanas de Obaluaê. A divindade tão temida e respeitada é evocada nos cultos para pedir restabelecimento da saúde ou para que esta seja mantida. Todas as grandes mazelas físicas dos indivíduos são na verdade oportunidades para que se busque o equilíbrio e a transformação de dentro para fora. Dizem alguns estudiosos que a medicina chinesa vincula as doenças que manifestamos aos comportamentos e padrões emocionais que mantemos. Uma vez eliminados, ou controlados esses comportamentos ou padrões, o mal manifestado na matéria humana desaparece gradativamente. Isso tem forte similaridade com a crença das religiões tradicionais africanas, pois Obaluaê ensina a todos nós como lidar com os sentimentos que nos perturbam para que não gerem doenças.

Geovana Miranda Santos/Omolu, após ter passado por uma cirurgia de mama, planeja abrir uma casa-apoio às mulheres que passaram pela mesma cirurgia.

São sujeitos de personalidade tímida, contida, tensa. Parece que sempre ocultam algo, extremamente misteriosos, na verdade sabem mais da essência humana do que se pode imaginar. Há também uma dualidade nessa divindade que pode estar presente nas suas versões urbanas, pois Obaluaê também é Omulu e essa é sua face mais sombria e mais próxima da morte e dos fenômenos interligados a ela.

Nanã é temida e seu poder soturno é um tanto escasso de se deparar pelas ruas, uma vez que são solitárias e adoram a segurança e a tranquilidade de seu lar. A energia da senhora do portal entre o mundo espiritual e terreno é muito presente e assusta um pouco os que os rodeiam. Em geral, são pessoas que gostam de contar histórias de casos sobrenaturais e possuem mais aceitabilidade diante das perdas.

Os seres urbanos que materializam essa divindade têm sempre a insegurança de quem está prestes a perder tudo que conquistou com tanto esmero e dedicação. São pessoas que se asseguram para as oscilações do mundo. Apegam-se a tudo que possuem, de bens e valores materiais a pessoas, e com certa frequência abandonam essas mesmas coisas como em resposta a perdas imaginárias já desenhadas em suas mentalidades que aparentemente nunca sossegam.

São pessoas que passam despercebidas devido ao comportamento programado para afastar tudo e todos. Mas quem se atreve a vencer a muralha sombria e espinhosa que elas constroem em torno de si, terão a mais sensível, fiel, desprendida, sábia e carinhosa criatura. A passividade e introversão características do arquétipo de Nanã encontram um contraponto no ser passional e impetuoso representado por Iansâ/Oiá.

Essa representação de pessoa guerreira, batalhadora e corajosa é talvez a mais comum de todas, porque Iansã/Oiá é divindade que comanda o mundo com espada na mão. É o arquétipo das heroínas evocadas no cinema ou ainda aquela mulher que rouba o lugar patriarcal e assume o comando, porque com a energia de Iansã/Oiá em ação, todos os limites impostos pelos homens são derrubados. São mulheres que lutaram nas grandes guerras, como Joana D’arc, Anita Garibaldi, Dandara dos Palmares, as mulheres do coletivo Mães de Maio.

É a persona que se joga no combate e vai à frente, se fazendo respeitar pela força, pelas estratégias de luta que a sua inteligência vigorosa e objetiva lhe ensinou. É a livre expressão da sensualidade máxima que pode portar um ser humano e que com frequência assusta os homens, acostumados com o comportamento feminino forjado pelas opressões machistas que tudo fazem para abafar a força sensual que habita toda mulher. É sem dúvida a mulher que comanda, mas não as grandes corporações, que exigem diplomacia e polidez social que ela não faz questão de ter, mas de tudo que envolve a sociedade em seu espaço total.

Também encontramos as manifestações urbanas dessas divindades nos esportes e na dança, onde se pode trabalhar o corpo e canalizar sua energia sensual para além da sexualidade que às vezes foge do controle. Os deprimidos e introvertidos, definitivamente não vivem sob esse arquétipo, pois neles tudo vibra, tudo é exagerado, tudo é entrega rápida e fugaz, mas de extrema beleza e sinceridade. O vermelho é sua cor mais frequente e que expressa seu caráter passional e profundo. Para essas pessoas francas e até grosseiras, rudes, não existe a impossibilidade, o marasmo, a letargia. Tudo que para, eles movimentam, tudo que esgota, eles renovam, tudo que se perdem, eles reencontram.

Dona Rosa/Nanã, moradora da Gamboa de Baixo. Lendas narram que ela tem 100 anos, enquanto outras lendas narram que ela nasceu com a cidade de Salvador. Certamente ela representa a alma da cidade.

Chegamos às águas brandas e envolventes de Oxum. Oxum é doce como suas águas, fala manso e é graciosa. Conquistar é um dom natural. Suas representações urbanas são extremamente cativantes e carregam consigo sempre uma aparente paz de espírito. Aparente, porque embora seja a expressão da beleza perfeita e da sedução bem dosada, são pessoas que nutrem em si uma insegurança quase infantil, buscando sempre a aprovação de seus feitos para se sentirem bem, o que as leva por muitas vezes a esquecerem delas mesmas. Na ânsia de agradar para receber atenção por vezes suportam abusos disfarçados de carinho, nem sempre conseguem diferenciar um do outro. Não lidam bem com a rejeição e estão sempre apaixonadas, senão por pessoas, por coisas, seres, estórias, sonhos, do contrário mínguam. São adeptas da paz, mas se contrariadas ou desafiadas transformam-se em obstinadas e vingativas.

Temos as expressões urbanas de Oxum nos meios estéticos, artísticos e jornalísticos. Oxum gosta de dar e de receber informações de toda espécie, desde as mais relevantes até as mais insignificantes, e gosta de uma boa roda de conversa. Também gosta muito da arte, mas não pelos mesmos questionamentos existenciais que Oxóssi, por exemplo, mas pela emoção que desperta nos que a observam. São seres que choram com a mesma facilidade com que riem. E respeitam tanto as lágrimas quanto as risadas que solta, porque são sempre sinceras por mais que às vezes pareça que não.

As representações urbanas de Oxum são sempre joviais, não importa a idade, pois a alegria juvenil tem sempre a inocência e a leveza que equilibram as mazelas do mundo, e sempre muito arrumadas, não resistindo aos apelos da moda. Aliás, seus maiores gostos e passatempos: beleza, conversas, disputas, holofotes e brilhos que se alternam. Mas não se iludam com a aparente futilidade que ostentam sem parcimônia, eles são seres inteligentes, de mentalidade potente e que sabem aplicar muito bem tudo que aprendem. E não se deixem levar pelo possível espelho ilusório de Oxum, pois ele não fala sobre a vaidade, fala sobre o autoconhecimento.

Oxum é bondosa e extremamente dedicada a todos, não suporta as injustiças do mundo e sofre intimamente com isso. É aquela pessoa que sempre tem colo, carinho e conforto para quem a procura. Mas também tem sábios e firmes conselhos e broncas…

As representações não param por aqui, são muitos que nos habitam e habitam por aí. Desse modo, somos templos naturais, é importante ressaltar, mesmo quando não os cultuamos, pois os Orixás — ao contrário do que a moralidade cristã presente em nosso pensamento coletivo tem como verdade — são, sobretudo, adeptos da liberdade, que faz com que nossas escolhas e as diferenças que as norteiam sejam bênçãos para um mundo tão vasto e tão cheio de possibilidades.

Por isso, quando falamos e estudamos sobre os arquétipos dos Orixás que reconhecemos no nosso cotidiano, conseguimos ter uma ideia mais objetiva do quanto as religiões tradicionais africanas abrigam naturalmente a diversidade, pois, as caracterizações nos trazem uma vasta gama de personificações e posturas muito diferentes entre si, mas que ao mesmo tempo se misturam e de algum modo estão interligadas às necessidades que temos nas nossas inter-relações sociais.

Luma Nascimento/Oxum, estudante da UNEB e dona da loja Dresscoração, junto com a irmã Loo, de roupa afro-brasileira.

Joice Berth é arquiteta e urbanista, escritora e pesquisadora sobre feminismo negro e questões raciais. Colunista do site Justificando e da e-revista Língua de Trapo, compõe o quadro de consultores da Feira Preta 2016 e é uma das organizadoras da Virada Feminista pela Descriminalização do Aborto online.

Antonello Veneri é formado em Literatura Italiana e História, e expõe suas fotografias em inúmeros museus e galerias. Desenvolve projetos de documentação social, em que narra por meio de suas fotos as histórias e o cotidiano da periferia e dos invisíveis das principais cidades brasileiras. Em 2014, ganhou o prêmio de melhor reportagem da National Geographic Itália com um trabalho sobre Salvador (Bahia).

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