Pelo direito à identidade de gênero

Revista Blooks
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5 min readMay 6, 2018

Texto de Jean Willys
Originalmente escrito para a Revista Blooks #1

As palavras “visibilidade” e “invisibilidade” são significativas para a comunidade LGBT. Pertencer a esta sopa de letras é transitar, durante a vida, entre a invisibilidade e a visibilidade. Se para lésbicas, gays e bissexuais serem visíveis implica se assumirem publicamente, para as pessoas trans, a visibilidade é compulsória a certa altura da vida. Ao contrário da orientação sexual, que pode ser escondida no “armário” (que nós, gays, lésbicas e bissexuais, usamos muitas vezes para nos defendermos da violência e da estupidez dos outros), a identidade de gênero não se pode ocultar: é como a cor da pele para negras e negros.

Homens e mulheres trans não têm como se esconder a partir de certa idade. Por isso, na maioria dos casos, são expulsos de casa, da escola, da família, do bairro e até da cidade. A visibilidade é obrigatória para aquele cuja identidade sexual está inscrita no corpo como um estigma indisfarçável. E o preconceito e a violência que sofrem é muito maior. Porém, de todas as invisibilidades a que eles e elas parecem condenados, a invisibilidade legal parece ser o ponto de partida.

O imbróglio jurídico sobre as identidades “legal” e “social” das pessoas trans provoca situações absurdas que mostram o tamanho do furo que ainda existe na legislação brasileira. Há pessoas que vivem sua vida real com um nome — o nome delas, pelo qual são conhecidas e se sentem chamadas, aquele que usam na interação social cotidiana — , mas que carregam consigo um RG que diz outro nome. E esse nome aparece também na carteira de motorista, na conta de luz, no diploma da escola ou da universidade, na lista de eleitores, no contrato de aluguel, no cartão de crédito, no prontuário médico. Um nome que evidentemente é de outro, daquele “ser imaginário” que habita nos papéis, mas que ninguém conhece no mundo real. Quer dizer, há pessoas que não existem nos registros públicos e em alguns documentos e há outras pessoas que só existem nos registros públicos e em alguns documentos. E umas e outras batem de frente no dia a dia em diversas situações que criam constrangimento, problemas, negação de direitos fundamentais e uma constante e desnecessária humilhação.

Jussara procura emprego distribuindo o currículo de João, José chega à consulta com o médico e exibe a carteirinha do plano de saúde de Rita, Vanessa se apresenta para votar nas eleições com o título de eleitor de Cláudio, a professora chama Júlio e quem levanta a mão é Maria. Parece coisa de loucos, mas é a lei.

O livro Viagem solitária, maravilhosa narração autobiográfica de João Nery, é um testemunho imprescindível para entender o quanto a reforma legal que estamos propondo é necessária. Para driblar uma lei que lhe negava o direito a ser ele mesmo, João teve que renunciar a tudo: sua história, seus estudos, seus diplomas, seu currículo. Foi só dessa maneira, com documentos falsos, analfabeto nos registros apesar de ter sido professor universitário, que ele conseguiu ser João. Por isso eu decidi batizar com o nome dele o meu projeto de lei de identidade de gênero, a Lei João Nery (PL 5002/2013). Se aprovada, essa lei respeitará finalmente o direito à identidade de gênero, acabando para sempre com uma gravíssima violação dos direitos humanos que ainda ocorre no Brasil e prejudica a vida de milhares de pessoas.

Falamos de pessoas que se sentem, vivem, se comportam e são percebidas pelos outros como homens ou como mulheres, mas cuja identidade de gênero é negada pelo Estado, que reserva para si a exclusiva autoridade de determinar os limites exatos entre a masculinidade e a feminilidade e os critérios para decidir quem fica de um lado e quem fica do outro, como se fosse possível. Travestis, transexuais e transgêneros sofrem a cada dia o absurdo da lei que lhes nega o direito a ser quem são. E andam pelo mundo com sua identidade oficialmente não reconhecida, como se, das profundezas da história da filosofia grega, Crátilo voltasse a falar para Hermógenes: “Tu não és Hermógenes, ainda que todo o mundo te chame desse modo.”

Travestis, transexuais e transgêneros são, hoje, no Brasil, homens e mulheres sem selo de qualidade, sem o carimbo dos oficiais competentes. Pessoas clandestinas. Mas quem determina quem tem direito a ser João ou Maria? O que é um nome? As perguntas parecem mal formuladas. Não há como o Estado determinar por lei a autenticidade masculina dos homens ou a autêntica feminilidade das mulheres. As pessoas trans lutam para serem reconhecidas, por isso, o Estado vem assumindo, aos poucos e a contragosto, essa realidade. Portarias, decretos e decisões administrativas de ministérios, governos estaduais, prefeituras, universidades e outros órgãos e instituições vêm reconhecendo o furo na lei e colocando em prática soluções provisórias sob o rótulo de “nome social”. Quer dizer, o Estado reconhece que o nome pelo qual “essas pessoas” se identificam e são identificadas pela sociedade não é aquele que está escrito na carteira de identidade, no CPF e no diploma da escola. Que a identidade oficialmente registrada é diferente daquela que a própria sociedade reconhece e os interessados reclamam para si. Como já disse: parece coisa de loucos, mas é a lei.

A dupla identidade está sendo oficializada e o Estado começa a reconhecer que existe uma discordância entre a vida real e os documentos. Esse estado de semilegalidade cresce a partir de decisões diversas carregadas de boa vontade, espalhadas pelo amplo território do público. São avanços importantes que devem ser reconhecidos, porque facilitaram a vida de milhares de seres humanos esquecidos pela lei, mas, ao mesmo tempo, evidenciam um caos jurídico que deve ser resolvido. O que falta, e é para agora, é uma lei federal que dê uma solução definitiva à confusão reinante. É o que muitos países têm feito nos últimos anos. Meu projeto, baseado na lei de identidade de gênero argentina, a mais avançada do mundo, recolhe a melhor dessas experiências, reconhecendo o direito à identidade de gênero (o direito a ter uma nova identidade e uma nova certidão de nascimento corrigidas, com o nome e o gênero que identifica a pessoa no mundo real) e regulamentando as intervenções cirúrgicas e os tratamentos hormonais que se realizam como parte do processo de transexualização, garantindo a livre determinação das pessoas sobre seus corpos e acabando com a patologização da transexualidade e com a interdependência legal entre identidade legal e anatomia.

É uma lei necessária e urgente. Uma de tantas que esse Congresso conservador até agora não teve sequer a coragem de debater. Mas eu espero que a pressão social permita que finalmente consigamos.

Jean Wyllys é deputado federal eleito pelo PSOL do Rio de Janeiro, jornalista e escritor baiano, professor universitário e colunista da revista Carta Capital.

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