Sob a luz do nosso luar

Revista Blooks
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7 min readMay 11, 2018

Texto de Julio Ibelli
Originalmente escrito para a Revista Blooks #5

Foto de Leandro Noronha da Fonseca

Artistas e produções brasileiras também abordam a questão do jovem negro, gay e morador de periferia, como no tocante Moonlight

Era pra ter sido a coroação de um tema — as tensões sobre ser negro e gay na periferia — e de um modo de fazer cinema, “independente”, com custo reduzido e praticamente todo o elenco formado por atores negros. Mas no meio do caminho tinha um envelope trocado. Tinha um envelope trocado no meio do caminho.

A confusão na cerimônia do Oscar este ano — que consagrou Moonlight: Sob a luz do luar como melhor filme — acabou por ofuscar uma discussão que produções e artistas brasileiros também trabalham, antes mesmo que o drama do personagem Chiron polarizasse com o casal dançante de La La Land — Cantando Estações as discussões sobre cinema e sociedade na temporada 2016/2017.

O Oscar já passou, mas o assunto ainda urge (e ruge), agora também pela importância do alcance de Moonlight. E, afinal, não é só na Miami de Moonlight em que jovens negros narram suas sagas sobre a sexualidade em meio à dura realidade das quebradas. O Brasil também está cheio delas — é só dobrar qualquer esquina — e os manos e minas daqui têm se dedicado a retratá-las, seja na música, no palco do teatro ou na tela grande.

NO PALCO

Moonlight ainda era um nome praticamente desconhecido do público brasileiro quando o ator e produtor cultural Igor Valentin, 30, levou pela primeira vez ao palco o monólogo Picumã — asas de passarinho preto, em março de 2016.

O nome da montagem, que também é de autoria do paulistano, faz referência à ave de plumagem escura e a como o cabelo é chamado na gíria gay: de picumã. A peça conta a história de Catatau, um jovem negro, gay e que vive na periferia. A inspiração é autobiográfica, de “feridas ainda não cicatrizadas”, como diz o próprio Igor também em depoimento nesta matéria. “O Catatau de Picumã tem muito a ver com a criança e o rapaz jovem que são personagens do filme”, compara ele, que ficou comovido e se identificou imediatamente com Moonlight: “Esse filme é para se ver e ter seus temas discutidos mais de uma vez, seja com os amigos, a família ou na escola.”

O motivo da semelhança entre os dramas abordados pela peça e pelo filme, segundo Igor, são as estruturas parecidas em que vivem os países colonizados e que passaram pela escravidão do povo negro. Mas a realidade brasileira desequilibra essa balança. “Jovens LGBTs negros ainda vivem em situações bem piores aqui, de pobreza, violência e invisibilidade. O Brasil é recordista em violência contra pessoas trans no mundo e foi o último país a abolir a escravidão.”

Mas apesar desses resquícios do passado serem ainda muito presentes, para ele também há muita força em ser a resistência da ancestralidade africana. “Nós já estamos com a palavra! Eu só contribuo com essa voz que foi silenciada há tanto tempo e hoje tem o microfone na mão, o palco nos pés e a coragem no rosto.” E finaliza: “Ainda temos muito para avançar.” O próximo passo é a ideia de transformar o texto integral da peça em livro, com fotos da montagem.

DEPOIMENTO

São marcadores sociais que nos definem desde os primeiros anos de vida — na escola principalmente. É lá o primeiro espaço em que vivenciamos as dores de ser, antes de mais nada, negros, pois vivemos em um país estruturalmente racista.

Depois, com a nossa identidade de gênero, nossa sexualidade, somos apontados sem nem saber o porquê. A escola não está preparada e nem disposta a discutir sobre isso. Não existe bullying. Na minha opinião, existem opressões estruturais muito definidas, como a LGBTfobia, o racismo, a gordofobia, o machismo e outras.

Na periferia é bem pior: temos as piores escolas, os piores meios de transporte, as piores moradias. Muitas famílias são evangélicas e extremamente conservadoras. Perdi a conta de quantas pessoas conheço que foram expulsas de casa por sua orientação sexual. Na periferia eu não posso manifestar minha afetividade com a mesma liberdade com que se tem no Centro, na Vila Madalena. As pessoas trans na periferia são massacradas, mais do que em qualquer outro território da cidade.

Ainda hoje quando eu saio na rua para trabalhar ou passear, sinto os olhares estranhos sobre a minha presença — sou uma bicha afeminada circulando pelas ruas do bairro. Começo a me sentir mais confortável somente quando entro no metrô e vou me aproximando do Centro. Isso acontece desde a infância, de voltar para casa chorando porque fui vítima de homofobia na escola, e ninguém saber lidar com isso, nem a família e nem os professores.

Igor Valentin

NA TELA

Quando chegou ao estádio do Morumbi com a ideia de um curta-metragem para registrar os fãs que estavam acampados com dois meses de antecedência para o show de Beyoncé, em 2013, o diretor Paulo Cesar Toledo notou uma coincidência. “A grande maioria, uns 90%, era formada por meninos, e quase todos eram homossexuais. Além disso, grande parte também era negra e vinha de bairros da periferia de São Paulo.”

Fotos: Divulgação

Da investigação sobre o perfil da fanbase da diva pop nasceu o documentário Waiting for B. (que também tem Abigail Spindel na direção), lançado só neste ano, e que a crítica chegou a chamar de “Moonlight brasileiro”. Personagens reais do filme, o cabeleireiro e maquiador Nilson da Silva Martins, 26, e o supervisor de relacionamento Jefferson de Souza C. Clifer, 24, ainda não assistiram Moonlight.

No documentário, Nilson (ou Junnior, como também é identificado) relata um caso de violência sofrida por um familiar contrário à sua sexualidade. É ele quem introduz Jefferson no filme, já no processo de transformação em Melina McLean, personagem que é o seu alter ego e com que faz shows. Os dois relatam as dificuldades pelas quais passaram por ser negros, gays e moradorxs da periferia — mas são otimistas com a mudança do quadro, talvez com a mesma alegria que levaram à calçada de um estádio de futebol pelos dois meses que antecederam o momento de ver a sua maior ídola.

NA MÚSICA

Apesar da ótica masculina de Moonlight sobre o tema, não são só os manos que se identificam com o filme, o que prova a relevância de seu discurso para qualquer público. “Eu canto sobre esse tema, eu canto o filme, eu canto a vida do jovem negro periférico”, diz Carol Dall Farra, 21. “Foi como se eu pudesse ver parte da minha trajetória, além de ser um alívio entender que a busca pelo entendimento não é única daquele jovem, o que é um fator de reconhecimento para muitos que estão na mesma situação.”

Foto de Anna Matos

Carioca, a moradora de Del Castilho fala com a propriedade de quem já trabalhou em projetos educativos na área do audiovisual no Complexo do Alemão. Hoje estudante de Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — onde também é mediadora na Casa da Ciência — ela vê dois lados em Moonlight.

De positivo, a visibilidade do assunto. “Há uma desejo por nossa parte de que tudo fique bem com o personagem.” Mas, ainda de acordo com Carol, o fato dessa história continuar a ser contada pode revelar como a realidade pouco mudou. E o que torna ainda mais dramática a situação de mulheres como ela.

“O fato de ser lésbica e negra me concede o ‘privilégio’ do atraso, mais do que eu já estou por natureza espacial [na periferia].” Para ela, não há trégua tampouco no ramo em que usa para se expressar.

“Eu canto rap desde os 15 anos, e se já é muito difícil ser mulher nesse meio, ser mulher e lésbica é ainda mais”, explica. “Eu fico fora do padrão de mulher idealizada por esse estilo musical em questões de gênero, por não cantar o amor em que se idealiza uma mina perfeita.”

Bandeira#

Tanto Jefferson/Melina quanto Igor chamam atenção para a invisibilidade negra dentro do próprio movimento LGBT. “Existe muito racismo nessa comunidade, reforçado por uma elite branca”, diz Igor, e continua: “Se você observar os filmes, peças de teatro, a própria Parada do Orgulho LGBT e outras manifestações, elas serão em sua maioria formadas por homens gays brancos e de classe média.”

Um novo capítulo dessa polêmica foram as críticas feitas por alguns integrantes do próprio movimento LGBT quando ativistas negros incluíram faixas nas cores marrom e preta na bandeira do arco-íris para representar essa população.

Julio Ibelli é jornalista e trabalha com redes sociais. Também faz resenhas de lançamentos literários para a Rolling Stone e já escreveu sobre cultura para outras publicações como a Billboard e o Diário do Grande ABC.

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