Sobre Londres, sapatos e vinhos

Revista Blooks
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3 min readMay 11, 2018

Texto de Flávia Oliveira
Originalmente escrito para a Revista Blooks #5

Eu devia estar escrevendo este artigo, mas gastei a noite do deadline procurando hospedagem para minhas próximas férias, porque a dona do apartamento que reservei em Londres, dois meses atrás, cancelou a reserva. A dez dias da viagem. Sim, eu sou uma brasileira, com curso superior, que dirige o próprio carro, tem casa própria, pagou escola particular para a única filha, viaja ao exterior, ama sapatos e vinhos. Integro a classe média negra, segmento que existe, mas se mantém invisível no imaginário da sociedade brasileira.

Quase 130 anos após a abolição, a representação de negras e negros no Brasil ainda remete às pinturas do francês Jean-Baptiste Debret e do alemão Johann Moritz Rugenda, no século XIX. Predominam as referências às classes populares, ao trabalho braçal, ao emprego sem carteira assinada, à baixa renda, à favela, à formação escolar limitada, à população carcerária, à ausência de serviços públicos. Pouco se diz ou se exibe dos negros que ascenderam.

Os negros — soma dos autodeclarados pretos e pardos na classificação de cor ou etnia do IBGE — não são maioria nas classes A e B, como são na população total (54%) ou entre os 10% mais pobres (três quartos). Estão, porém, em número suficiente para serem identificados e revelados. Um em cada dez negros brasileiros de 25 a 34 anos já tinha concluído a faculdade em 2013; 39% contavam com acesso doméstico à internet e 47%, com máquina de lavar. São espécies de passaporte para a classe média ou média-alta.

Mas o Brasil mantém sob uma cortina negras e negros que subiram degraus na pirâmide social. É comportamento que restringe sonhos, posto que impede a construção de referências de ascensão socioeconômica.

Negros são muito requisitados para falar sobre racismo, mazelas, carências. Raramente são convocados para tratar das potências ou, mais simples ainda, das miudezas do cotidiano: um livro, um disco, um cantor, uma atriz, uma viagem, um passeio, férias, família, comida, língua estrangeira, perfume. Virar o jogo será naturalizar a presença negra em todas as camadas da pirâmide social, não apenas na base.

Eu quero falar sobre Londres e sapatos e vinhos e Belchior. Eu gosto de salto alto; tenho vários. Adoro tintos, brancos e rosés. Nos brunchs preguiçosos de domingo, preparo mimosas, drinque que mistura espumante e suco de laranja. Ouvi Belchior incessantemente na adolescência e na juventude. Retornei ao velho hábito depois que o cantor e compositor nos deixou subitamente no último domingo de abril. Acho Lira dos vinte anos a canção mais linda.

Estive em Londres durante os Jogos 2012. Queria experimentar a rotina da cidade olímpica anterior ao Rio. A capital inglesa ocupou um terço de uma viagem de 15 dias à Europa, com passagens por Berlim e a eterna Paris. Nunca me esqueci do Tate Modern, um dos museus mais interessantes que já visitei. Foi lá que conheci, ao vivo, a obra de Damien Hirst, artista britânico tão genial quanto polêmico. A estrela da exposição era o tubarão tigre preservado num tanque com formol (The physical impossibility of death in the mind of someone living, de 1991). Mas nada me impressionou mais que a série de telas, murais e vitrais feitos com borboletas, ao mesmo tempo belos e cruéis.

Voltei a Londres neste julho. Um amigo indicou o pato laqueado do Golden Dragon e um espetáculo ao ar livre no Regent’s Park. É verão, afinal. Estou preocupada com a desvalorização do real, que tornará mais cara a viagem em libra esterlina. E a dona do apartamento alugado e pago fez o favor de cancelar a reserva. A dez dias da viagem. E o segundo proprietário avisou que não tinha a data disponível. A dez dias da viagem. Eu perdi o deadline deste artigo para encontrar um hotel. Encontrei, só que mais caro. Da próxima vez, vou escrever sobre como não dei sorte com o Airbnb. Juro que tentei.

Foto de Marta Azevedo

Flávia Oliveira é jornalista pela UFF e técnica em estatística pela Ence. A carreira na imprensa começou em 1992, como repórter no Jornal do Commercio. No jornal O Globo trabalha desde 1994. É colunista na editoria Sociedade. Comenta economia no telejornal Estúdio i, da GloboNews, e no CBN Rio, da Rádio CBN. Apresenta a temporada 2017 do programa TED Compartilhando Ideias, do Canal Futura. É membro do conselho consultivo da Anistia Internacional Brasil.

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