Sofia Coppola — Operária da vontade

Revista Blooks
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5 min readMay 11, 2018

Texto de Rodrigo Fonseca
Originalmente escrito para a Revista Blooks #5

Ao bater os olhos numa camiseta com o rosto de Bill Murray, com um uísque na mão, cercado pelos dizeres “For relaxing times… make it Suntory time”, usada pelo repórter da Blooks, durante um papo em Cannes, a diretora Sofia Coppola abre um sorriso tímido, daqueles de enrubescer bochechas, indicando a surpresa de ver uma imagem que criou ter sido devorada pela indústria pop nerd.

Murray faz propaganda de bebida em Encontros e Desencontros, filme que deu a ela o Oscar de melhor roteiro em 2004, e que promoveu a cineasta a um posto de artista da inquietação. A recorrência de um assunto — pessoas desgarradas em busca de algum senso de pertencimento — fez dela uma autora coroada com um Leão de Ouro por Um Lugar Qualquer (2010). Só que, este ano, no maior festival do mundo, Sofia conquistou uma vitória de um simbolismo político singular no debate da afirmação de gêneros. A excelência narrativa impressa em seu novo longa-metragem, O Estranho que Nós Amamos (The Beguiled), que estreia no Brasil no dia 10 de agosto, fez com que ela quebrasse um jejum histórico ao se tornar a primeira mulher, desde 1961, a ganhar o prêmio de direção em Cannes. Antes dela, a última ganhadora foi Yuliya Solntseva, laureada por A Epopeia dos Anos de Fogo.

Com o êxito em Cannes, já se forma um boca a boca em torno de uma impossível nova indicação ao Oscar para ela, por seu trabalho no comando de Nicole Kidman, Colin Farrell e Kirsten Dunst na adaptação do romance The Beguiled, repaginado num clima gótico. Escrito por Thomas Cullinan, o livro foi filmado por Don Siegel em 1971, com Clint Eastwood no papel hoje confiado a Farrell. Nesta produção de US$ 10,5 milhões, rodada na Louisiana, o irlandês assume o papel de um soldado ianque que, ferido em meio à Guerra de Secessão, consegue abrigo em uma escola sulista para moças, dirigida por Mrs. Martha (Nicole, também premiada em Cannes, com uma láurea especial pelo conjunto de sua carreira).

Na entrevista a seguir, Sofia fala do filme, de si e da condição feminina.

De Encontros e Desencontros (2003) em diante, seus filmes passaram a ser encarados como um farol existencial afetivo para uma geração que hoje tem 30 e poucos, 40 anos, pela maneira como retrata figuras desgarradas. Como é esse existencialismo que se repete em você?

Eu fico muito lisonjeada por saber que alguém possa encarar meus filmes assim, pois minha preocupação criativa não passa por aí, mas apenas pelo interesse em estabelecer uma ponte entre o espectador e assuntos que possam desestabilizá-lo. Eu filmo histórias que buscam uma comunicação direta com o meu público, que abram conversas e provoquem sensações, discussões. Mas não existe uma proposta estética por trás, nem uma conexão que eu estabeleça entre um filme atual e meus filmes anteriores. Em O Estranho que Nós Amamos, por exemplo, havia apenas a vontade de investigar o lugar do feminino em outro ambiente, um local de isolamento, o lugar do gótico.

A palavra essencial a esse filme é essa, gótico, pois estamos diante de um universo de sombras. Que referências plásticas estruturam esse tom sombrio aqui, que evoca um tom quase de expressionismo?

Esse tom é da natureza das sombras, mas o caso aqui foi mesmo uma relação com a tradição da arte gótica, compondo quase um clima de terror em meio a um enredo realista, que reflete a incerteza nas almas e sensações dos personagens.

Por que a escolha do fotógrafo francês Philippe Le Sourd para buscar esse ar gótico?

Filmar com Philippe não foi uma decisão tomada pela luz, mas pela intimidade singular dele com o espaço. Queria trabalhar em película, com alguém que dominasse a profundidade de campo inerente a se rodar com filme. Ele era um artesão nisso.

Quem são as mulheres de O Estranho que Nós Amamos?

São mulheres que se conectam, que buscam uma estratégia baseada na união. Existe entre nós um senso de conexão diante de uma situação que nos parece adversa e essa habilidade de formar estratégias que me interessava buscar entre aquelas personagens. E na hora de buscar um elenco, tendo alguém que eu admirava muito como a Nicole Kidman à frente da cena, bastava juntar amigas, como Elle Danning e Kirsten Dunst, e ver as grandes atrizes que elas se tornaram desde a última vez em que trabalhamos.

O que existe de mais potente no livro de Cullinan que torna aquela visão da Guerra de Secessão viva?

Não é a Guerra Civil em si que faz dele um livro singular, mas a tensão de forças e de poderes sob uma ótica feminina. Existem mulheres ali que tentam buscar um lugar para si naquela América, numa terra de homens, de conflitos. Foi um amigo que me indicou a leitura do romance, dizendo: “É uma história sobre um colégio de mulheres no meio de uma guerra.” Foi essa a premissa que eu rodei.

Na versão original do livro de Cullinan para as telas havia Clint Eastwood e aqui, com você, está Colin Farrell. O que ele trouxe para a figura de McBurney?

Desde que mergulhei nesse enredo, passei a encarar McBurney como alguém capaz de lidar com qualquer situação pelo jeito misterioso que expõe emoções. Existe algo mais singular nele do que a dubiedade, que é uma suposta onipotência. O que Colin faz é lidar com esse ar inquebrantável dele com exotismo. Ali, num contexto no qual é refém, ele fica à mercê de vontades que não pode dobrar.

Você tem um Oscar e um Leão de Ouro em seu currículo e goza de um público fiel no circuito alternativo. Mesmo assim segue fazendo projetos de baixo orçamento, longe das superproduções. Por quê?

Pela liberdade. Eu arrisco. Faço filmes sem um padrão estabelecido. Gosto do desafio de explorar universos sobre os quais nunca havia me debruçado. Nunca havia pensado em um dia estar associada a uma ideia de remake. Mas apareceu este livro e veio o desejo de filmá-lo. É assim que eu opero, pela vontade.

Rodrigo Fonseca é crítico de cinema, roteirista da TV Globo, colunista do site Omelete e blogueiro no jornal O Estado de S.Paulo. Cometeu o romance Como era triste a chinesa de Godard, em 2011, e a peça teatral Encontros Impossíveis.

Sofia Coppola é cineasta, roteirista, produtora e atriz estadunidense. Em 2003, recebeu o Oscar de Melhor Roteiro Original pelo filme Encontros e Desencontros, e se tornou a terceira mulher a ser indicada para um Oscar de Melhor Direção. Em 2010, com o drama Um Lugar Qualquer, ela se tornou a quarta cineasta dos Estados Unidos (dentre eles a primeira mulher) a ganhar o Leão de Ouro, o maior prêmio no Festival de Cinema de Veneza.

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