15 de novembro: um feriado para (des)entender o Brasil

Uma proclamação amorfa e um efeito borboleta à brasileira

Anderson Barollo Pires Filho
Revista Brado
6 min readNov 15, 2021

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Proclamação da República, 1893, óleo sobre tela de Benedito Calixto (1853–1927). Crédito: Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

“Eu quisera poder dar a esta data a denominação seguinte: 15 de Novembro, primeiro ano de República; mas não posso infelizmente fazê-lo. O que se fez é um degrau, talvez nem tanto, para o advento da grande era”.

Assim começava mais um artigo, para o jornal Diário Popular, do colunista e jornalista Aristides Lobo — correspondente e testemunha ocular daquela fatídica manhã de novembro. O ano era o histórico 1889. O Brasil deixava de ser um Império para se tornar uma República, ao passo que sofria o primeiro — e o maior — golpe militar de sua história. A data ficou conhecida como “Proclamação da República” e é, ou deveria ser, um dos principais feriados do nosso calendário.

Pois bem. Que a proclamação na verdade foi um golpe e que o povo assistiu a derrubada de um regime constitucional de forma “bestializada, atônita, surpresa, sem conhecer o que significava” — célebre passagem do republicano Lobo — já é um conhecimento cada vez mais público e popular. Mas, embora também disponível para o domínio público, o que é pouco comentado pela academia e sociedade, são os bastidores e contextos daquela exclusiva data e os impactos cruciais que ela pariu para nós, brasileiros.

A manhã de 15

Naquela manhã de sexta-feira, o futuro primeiro presidente da República do Brasil estava muito doente. Mesmo assim, o então marechal Manuel Deodoro resolveu sair de sua cama, às 6h da matina, junto com sua quartelada, rumo à Praça da Aclamação (RJ) — atual Praça da República — derrubar não o sistema monárquico, mas sim o gabinete do presidente do Conselho de Ministros, chefiado por Visconde de Ouro Preto.

O motivo da destituição? Um boato. Um boato que circulava na imprensa, articulado principalmente pelo jornalista republicano Quintino Bocaiúva, que dizia que o primeiro-ministro Ouro Preto havia expedido uma ordem de prisão contra Deodoro e demais militares — entre eles o líder dos oficiais republicanos, o tenente-coronel Benjamin Constant.

Grosso modo, o presidente do Conselho de Ministros era uma espécie de primeiro-ministro, que tinha a autonomia legal de montar e nomear os ministros de Estado. Criado pelo imperador D. Pedro II, em 1847, o cargo era nomeado exclusivamente pelo monarca. Crédito: A coroação de dom Pedro II, em 1841, foi o mote da segunda letra do Hino Nacional/Agência Senado.

Após derrubar Visconde, Deodoro voltou para sua casa para repousar — o herói de guerra estava, de fato, mal de saúde. Ainda na sexta, um pouco mais tarde, Manuel recebeu uma nova visita, dessa vez do major Solon Ribeiro, que estava acompanhado do conspirador Bocaiúva. Era mais um boato. A fake da vez era que o imperador D. Pedro II havia nomeado Gaspar Silveira Martins para assumir o Conselho de Ministros. Gaspar (político considerado, na época, “dono” do Rio Grande do Sul) era um desafeto político e pessoal histórico do marechal.

Não havia nomeação alguma, mas o segundo boato acarretaria de uma vez por todas no fim do Brasil Império. Enfermo em sua cama, o primeiro ditador constitucional do país respondeu as suas visitas da seguinte forma: “pois diga ao povo que a República está feita”. E assim foi: mandado dizer.

“República no Brasil é coisa impossível, porque será uma verdadeira desgraça. Os brasileiros estão e estarão muito mal-educados para tornarem-se republicanos. O único sustentáculo do nosso Brasil é a monarquia; se mal com ela, pior sem ela” — trecho da carta de Deodoro da Fonseca a um sobrinho, 63 dias antes do golpe.

Uma república sem republicanos

Sem movimento social e sem republicanos convictos — sequer o proclamador era adepto ao modelo. O republicanismo no Brasil era muito fraco e, em sua representação oficial, retrógrado — vide o Partido Republicano Paulista (PRP), por exemplo, que era escravocrata. De fato havia alguns grupos, restritos, que defendiam o fim da escravidão e uma reforma política com sistema universal de ensino, porém eram minoritários e pouco expressivos.

Em resumo, a principal motivação e bandeira dos republicanos de última hora — vulgo cafeicultores escravocratas — era a maior autonomia e poder para seus estados e municípios. O chamado federalismo. Na prática, esse novo modelo de organização de Estado acabou acontecendo de cima para baixo, caindo nas mãos do que havia de pior no país. Em outras palavras, os “mandões”, “coronéis” ou qualquer outro nome que você preferir estavam institucionalizados e prontos para exercer sua autoridade em suas regiões.

Há uma série de outros fatores que envolve a queda da monarquia brasileira: o desuso e desatualização do próprio modelo de governo, a ascensão da república ao redor do mundo, o avanço do positivismo dentro das academias militares, a Lei Áurea, entre outros. Sem “sujar suas mãos”, os cafeicultores paulistas conspiraram e financiaram um golpe militar para derrubar o Império e instaurar a República. De quebra, ganharam mais poderes políticos e econômicos em suas regiões, e futuramente implementariam a famosa política do “café com leite”. Crédito: Reprodução/Fuvest

“…Por ora, a cor do governo é puramente militar, e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula” — trecho do artigo de Aristides Lobo. Rio, 1889.

A provisória mais que centenária

Além da flagrante ausência civil em todo o processo que culminou no 15 de novembro, os brasileiros também ficaram de fora de uma consulta popular prevista legalmente através do primeiro decreto de nossa República Federativa.

O decreto Nº1, de 15 de novembro de 1889, dizia, em seu primeiro artigo, o seguinte: “Fica proclamada provisoriamente e decretada como a forma de governo da nação brasileira — a República Federativa”. Intitulado como governo provisório, o sétimo artigo do decreto ia além, e previa um plebiscito: “…aguardando, como lhe cumpre, o pronunciamento definitivo do voto da nação, livremente expressado pelo sufrágio popular”.

De fato, essa consulta aconteceu — 104 anos mais tarde. Naquela ocasião, a República obteve 86,6% dos votos válidos, contra 13,4% para a monarquia. Ou seja, entre 1889 e 1993, o Brasil viveu provisoriamente sob o sistema republicano.

“…Mas voltemos ao fato da ação ou do papel governamental. Estamos em presença de um esboço, rude, incompleto, completamente amorfo. Bom, não posso ir além; estou fatigadíssimo, e só lhe posso dizer estas quatro palavras, que já são históricas.” — trecho do artigo de Aristides Lobo. Rio, 1889.

O efeito borboleta à brasileira

Não sei você, mas às vezes me pego pensando em pequenos eventos que, se alterados sutilmente, poderiam mudar todo o rumo da nossa história. E se Deodoro resolvesse ficar dormindo naquela manhã de sexta-feira? E se Gaspar não fosse um desafeto histórico de Manuel? E se o boato de Bocaíuva não colasse?

Teríamos um 3º Reinado, chefiado pela Imperatriz Isabel? Uma mulher fortemente identificada com as principais causas democráticas da época — como o abolicionismo e a alteração do regime de propriedade da terra, defendidas por figuras como Joaquim Nabuco e André Rebouças.

Ela, enquanto mulher no fim do século XIX, conseguiria reinar uma nação tão machista como a brasileira? Ou a república seria um fenômeno inevitável no Brasil? Se sim, ela poderia vir através de um movimento popular e não por um golpe? Estaríamos nós em uma monarquia parlamentar hoje?

Definitivamente, nunca teremos respostas para essas perguntas. Mas quem sabe um dia eu devaneie e reinvente, de forma literária e também histórica, esses possíveis futuros que não aconteceram?

Mas voltemos ao meão deste texto, que já está em seu fim. Enfermidades, fake news, desafetos, golpes, conspirações, ditaduras militares. Essas palavras te dizem alguma coisa? E as perguntas que acabo de fazer? Desvendam ou explicam algo?

Se tudo isso te ajudar, de alguma forma, a (des)entender esse Brasil que vivemos, é sinal de que talvez ainda estejamos provisoriamente sob uma república. Bom feriado de segunda.

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Anderson Barollo Pires Filho
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