A Armadilha de Tucídides: EUA e China caminham para a guerra

Desde a Grécia Antiga, tensões como as que evoluem entre as duas potências só não levaram a conflitos quatro vezes — nenhuma por boa vontade

João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado
9 min readJun 5, 2023

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“Minha obra foi escrita não para granjear o aplauso do momento, mas para que todos os tempos a possuam”. Essas palavras foram escritas pelo historiador ateniense Tucídides há quase 2.500 anos. Para muitos estudiosos, ele foi o pai da historiografia, tendo se destacado pela imensa riqueza de detalhes, profundidade analítica e estrita imparcialidade. Tão influente é sua obra que o livro “A Guerra do Peloponeso”, escrito no século V a.C, se tornou um marco no desenvolvimento da historiografia e ainda é referência para outras áreas do conhecimento.

As observações de Tucídides foram se difundindo ao longo dos milênios, e nas Relações Internacionais servem de base para uma teoria intitulada “Armadilha de Tucídides”, proposta pela primeira vez pelo autor norte-americano Graham Allison em um artigo de 2012. O cientista político e professor da Universidade de Harvard analisou o que Tucídides descreveu e concluiu que a realidade da época se assemelhava a outros momentos da história, como se houvesse um padrão repetitivo na forma com que diferentes países interagem entre si.

Em sua obra da Antiguidade Clássica, o autor grego descreveu como a região do Peloponeso foi profundamente abalada por um violento e prolongado conflito entre duas grandes cidades e suas respectivas alianças de cidades-estados, a Liga do Peloponeso, liderada por Esparta, e a Liga de Delos, liderada por Atenas. Nas palavras de Tucídides, “a ascensão de Atenas e o consequente temor instalado em Esparta tornaram a guerra inevitável”.

Em resumo, a cidade de Atenas, na percepção de Esparta, estava se tornando poderosa demais, a ponto de virar uma ameaça para seus interesses na região, onde Esparta até então tinha posição de hegemonia. Não apenas isso, mas o próprio modelo político e social de Atenas, a democracia, era radicalmente oposto aos princípios espartanos, que tinham receio de que o contínuo sucesso ateniense junto com os preceitos democráticos poderia influenciar uma rebelião dos hilotas, uma classe social espartana sem direitos e submetida à servidão.

Para Esparta, portanto, Atenas havia se tornado um agente da mudança no sistema político grego, enquanto eles permaneciam como um agente do status-quo. Vale lembrar também que, no contexto das guerras da Grécia Antiga, a possibilidade da derrota por um rival é também uma ameaça existencial, já que a derrota de uma cidade por uma outra quase sempre envolvia a destruição da cidade derrotada e a escravização de toda a população sobrevivente.

Do outro lado desse tabuleiro geopolítico, Atenas também se inquietava: por mais que fossem uma estrela em ascensão naquele contexto, Esparta e seus aliados ainda eram potências militares de peso e que, se desejassem, poderiam conspirar contra o sucesso econômico e comercial ateniense. Além disso, Atenas e seus aliados eram potências navais, já que eram voltadas para o comércio marítimo, enquanto a Liga do Peloponeso detinha grandes forças terrestres. Portanto, não importava o quanto os líderes de Atenas analisassem a situação, Esparta e sua liga detinham poder demais e a ameaça potencial representada por eles simplesmente não podia ser ignorada.

O quadro geral da região, portanto, era de tensões. Haviam razões de sobra para se desconfiar um do outro, mas, como dito por Tucídides, nenhuma das cidades desejava a princípio uma guerra, pois era bem claro o desastre que seria caso um conflito de tais proporções eclodisse, ainda mais em uma época em que a Grécia se recuperava de uma recente invasão persa.

Entretanto, esse pensamento pragmático não alterava o quadro de rivalidade como um todo e nem sempre se aplicava aos demais membros das duas ligas. No ano de 435 a. C, ocorreu um incidente entre a cidade de Corinto, aliada de Esparta, e a cidade de Córcira, inicialmente neutra, mas posteriormente aliada de Atenas, que causou a faísca necessária para que as alianças rivais se envolvessem e entrassem em conflito.

Ilustração do século XIX retratando uma possível cena de combates entre atenienses e espartanos em Siracusa, na Sicília, onde o conflito se espalhou. Imagem: Chronicle/Alamy

O resultado foi um desastre: após quase três décadas de intensos conflitos, Espata saiu vitoriosa e esmagou Atenas, que conseguiu sobreviver sob um regime pró-espartano. Entretanto, a vitória foi pírrica, isto é, custosa demais para sequer ser comemorada, visto que o saldo do conflito foi terrível demais para Esparta e toda a região, que terminaram extremamente enfraquecidas. Posteriormente, os espartanos foram derrotados pela cidade de Tebas, uma aliada de Atenas que havia sobrevivido, mas logo estes também seriam subjugados pelas forças da Macedônia de Filipe II e seu filho Alexandre o Grande, que juntos conquistam toda a Grécia.

Para recapitular, então, o que Tucídides descreve essencialmente é o processo com que duas civilizações entraram em colapso após as duas potências, uma já em posição de vantagem e outra em ascensão, entrarem em um ciclo inescapável de desconfiança que gerou sérias disputas, pois nenhuma das duas conseguia confiar totalmente nas intenções da outra e sequer desejavam algum tipo de equilíbrio, mas a maximização de seus interesses, de forma que ficou impossível evitar que ambos os poderes colidissem.

É essa descrição que Graham Allison usa para questionar se em outros momentos da história houveram ocasiões em que outros Estados se situavam de maneira similar a Atenas e Esparta nessa época. A conclusão de sua pesquisa é no mínimo preocupante: dos 17 casos identificados e analisados ao longo da história, 12 resultaram em conflito entre as partes envolvidas. Os cinco restantes, infelizmente, não são exatamente casos de países que tiveram sucesso em “desarmar” a Armadilha.

Os dois casos onde vemos enfim uma perspectiva mais otimista são das rivalidades EUA x Inglaterra no início do século XX e Inglaterra e França x Alemanha no pós-Guerra Fria. Ambas são ocasiões em que os países evitaram a Armadilha por completo antes que fosse tarde, isto é, não começaram a sequer enxergar uns aos outros como possíveis inimigos, e portanto não “ativaram” a Armadilha.

Outros dois casos, a rivalidade entre Espanha x Portugal no final do século XV e a Guerra Fria entre EUA e URSS, não caíram em guerra por motivos de força maior, ou seja, as partes envolvidas se viam como rivais e ativamente competiam entre si, mas não caíram em guerra por motivos superiores aos de vontade própria.

O balanço que temos com esses casos é de que, mesmo quando uma Armadilha não resultou em um conflito entre as partes, não podemos considerá-los sucessos plenos, pois até então nunca houve um caso no qual países que se encontraram ativamente na Armadilha conseguiram conscientemente fugir dela, depois de a terem ativado. Isso é ainda mais problemático quando consideramos um último caso, dentre os cinco que ainda não resultaram em conflito, pois ele está acontecendo neste exato momento.

Em outras palavras, se olharmos pelas estatísticas, as chances de haver saída para os Estados que caem na Armadilha de Tucídides parecem ser bem pequenas. Isto é essencialmente o aviso dado por Allison: para ele, cada dia caminhamos mais para a formação de uma Armadilha na rivalidade entre a China e os Estados Unidos. Por isso o título de seu livro é o nada animador “A Caminho da Guerra”.

Tal como Atenas e Esparta, EUA e China se posicionam em lados opostos neste modelo: os EUA seriam como Esparta, um agente defensor do status quo atual, que deseja pouca ou nenhuma mudança na configuração de poder global e, portanto, age de forma a manter o atual estado das coisas ou no mínimo conter o avanço de possíveis rivais. A China, por outro lado, seria como Atenas, uma agente da mudança, que por conta de suas ambições, busca se firmar como uma potência de caráter global e reorientar o cenário geopolítico de seus arredores, que a seu ver é marcado por enorme presença norte-americana.

Para deixar claro: não é interesse deste texto julgar o que ou quem está certo ou errado nessa história, mas mostrar que, enquanto esses interesses e aspirações que divergem tanto entre si forem mantidos intactos, será inevitável que os dois Estados enxerguem um aos outro como ameaças potenciais e então como rivais, de modo que atos de provocação se tornarão cotidianos, como observamos nos últimos anos.

Sob esta perspectiva, alguns fatos da realidade podem ser melhor explicados. A China está a caminho de se tornar a maior força naval da Ásia, em uma escala de crescimento maior e mais rápida que qualquer outra força naval desde a Segunda Guerra Mundial. Em algum momento nessa mesma década, de acordo com alguns especialistas, o seu poderio vai se igualar e então superar ao dos EUA no Oceano Pacífico.

Como forma de conter esse avanço, os EUA fazem um movimento para reforçar suas as alianças com outros países da região, o que também envolve o aumento do auxílio militar ao governo de Taiwan, um rival declarado — e não reconhecido como independente — de Pequim. O resultado direto desses movimentos em duas direções opostas podem ser observados nos incidentes do Estreito de Taiwan no ano passado, por ocasião da visita de uma delegação do Congresso americano à ilha.

Esses são só dois exemplos entre tantos outros nessa rivalidade onde prevalece a lógica de provocar um adversário a expor suas capacidades (e eventuais fraquezas) ou para compreender os limites que cada um consegue tolerar. É quase como se fosse tudo um jogo de encarar o rival e quem reage ou recua primeiro perde.

Aviões chineses participam de exercício próximo a Taiwan como demonstração de força. Foto: China Military

Enfim, o padrão aqui é bastante claro. Com o curso atualmente traçado, ficará cada vez mais difícil recuar frente uma confrontação real. Mas, ainda existe a chance de voltar atrás, ao menos na teoria. Os poucos casos de sucesso em que países lidaram com uma situação similar e não caíram imediatamente em conflito, mostram que uma saída possível é haver uma série de comprometimentos, sinalizações ou recuos estratégicos para acomodar algumas vontades de cada um até certo ponto. O segredo aqui, para começar, talvez seja gradualmente construir uma relação de confiança entre os dois Estados e diminuir o tom confrontador, até que as aspirações divergentes possam se acomodar.

De qualquer forma, não precisamos nem dizer que isso é bem difícil. Abrir mão dos interesses nacionais em prol da satisfação de um possível rival é uma tarefa bastante amarga e certamente nem todos os governantes estariam dispostos a arriscar ceder alguma coisa em troca de outra, que por vezes nem é equivalente. É da natureza do Estado, creio, que aqueles em posição de poder tendem a priorizar o interesse de seu Estado sobre todos os demais, o que talvez seja especialmente verdade neste caso, tendo em vista que China e EUA possuem modelos de governo e sociedade bastante competitivos. Ainda assim, compreender o que está em jogo e quais as consequências para o fracasso é necessário, pois, assim como no desastre da Guerra do Peloponeso, outros momentos mais recentes da história nos oferecem lições valiosas para termos alguma ideia do que o futuro nos reserva.

Encontro de Biden e Xi em Bali no ano passado pode ser visto como um pequeno passo em prol da normalidade de relações, que ainda está bem distante. Foto: Saul Loeb/AFP/Getty Images

Um dos mais emblemáticos casos de fracasso ocorreu durante a Crise de Julho de 1914, que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, quando os líderes das principais nações europeias tiveram a chance de fazer “freios calculados” ao ceder determinadas coisas a seus rivais, o que poderia ter evitado um conflito que envolveria, já da noite para o dia, milhões de pessoas em meia dúzia de nações. Talvez pelo sistema complexo de alianças — que também foi um fator decisivo para a Guerra do Peloponeso — ou talvez porque a Armadilha já estava ativada, mas qualquer tipo de comprometimento não foi pra frente ou fracassou, fazendo com que um pequeno incidente entre dois países de pouca expressão global, a Áustria-Hungria e a Sérvia, evoluísse para um conflito mundial de tamanhas proporções que até hoje, mais de um século depois, ainda vivemos as consequências.

Este texto não foi feito como uma tentativa de prever o futuro, pois isso é impossível. As Relações Internacionais são uma ciência que dispõe de instrumentos capazes de analisar uma determinada situação para extrair conclusões acerca da nossa realidade, que naturalmente podem ou não se concretizar. Por isso, este texto não deve ser encarado como fatalista. Por mais séria que a situação seja, no fim das contas o pior só acontecerá se houver ação deliberada por uma das duas partes e, tendo em vista o desastre político e militar que está ocorrendo na Ucrânia e o fato de estarmos lentamente tomando consciência desse problema, é possível que uma escalada descontrolada nas tensões seja evitável.

Este texto busca mostrar não só o quão distante do cotidiano das pessoas comuns a política por vezes pode chegar, mas também a profundidade com que a geopolítica se manifesta, de modo que algumas coisas simplesmente não têm saída fácil. Se na ocasião da Primeira Guerra nem mesmo as conexões pessoais e os parentescos entre os monarcas europeus foram capazes de evitar um conflito de proporções continentais, não serão mera compaixão e retórica de paz que desarmarão uma Armadilha que cruza o Pacífico. Somente uma estratégia real de comprometimentos entre os interesses vitais e as ambições práticas das duas potências evitará o pior. E, na ausência de sinais nesse sentido por parte tanto dos EUA quanto da China, a única coisa que me pergunto neste momento — e sem resposta alguma — é quanto tempo ainda temos.

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João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha | Colunista de Política da Revista Brado.