A democracia em frangalhos

Traições, golpes e reviravoltas agitam os corredores de Brasília

João Vitor Castro
Revista Brado
10 min readFeb 4, 2021

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Bolsonaro, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira em cerimônia de posse dos parlamentares como presidentes das Casas Legislativas. Brasília, 3 de fevereiro de 2021. Foto: Pedro França/Agência Senado

Nos últimos anos a crise da democracia tem sido um dos grandes temas de debate em todo o mundo. Correntes de viés autoritário, sobretudo de direita, emergiram e chegaram ao poder nos quatro cantos da Terra. Desde a posse de Donald Trump em 2017, a América do Norte e o Ocidente como um todo viveram diversos momentos de tensão.

Na América Latina, os anos de 2019 e 2020 foram marcados por meses de instabilidade: recrudescimento da ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela; compilado de golpes e contragolpes na Bolívia¹; protestos violentos e repressão policial no Chile e no Equador; e instabilidade política e jurídica no Peru, que vive uma crise de sucessão e tem quase todos os seus ex-presidentes presos por corrupção.

Na Europa, a crise migratória acentuada em 2015 deu lugar a uma extrema-direita belicista e xenofóbica, que culminou no plebiscito do Brexit no Reino Unido e no crescimento de partidos de extrema-direita em diversos países, muitos dos quais com caráter altamente racista e militarista, além da intensificação dos regimes autoritários de Viktor Orbán na Hungria e Lukashenko na Bielorrússia². Em países do leste asiático onde a democracia ainda é uma utopia, como China e Rússia, acentuou-se a repressão e o descumprimento dos direitos humanos.

Tanques nas ruas e prisões da líder do governo Aung San Suu Kyi e outros representantes civis fazem o Myanmar viver cenas de guerra. Foto: Maung Lonlan/EFE/EPA

Mas se até 2020 as democracias estiveram em crise e conspirações foram cozinhadas, no ainda recente 2021 o golpismo parece adquirir uma nova face. No dia 3 de janeiro, extremistas invadiram o Capitólio, sede do poder Legislativo estadunidense, a fim de impedir a nomeação de Joe Biden. Já nos primeiros dias de fevereiro ocorreu um golpe militar no Myanmar e uma nova condenação de Alexei Navalny, principal opositor do presidente russo Vladimir Putin, que já havia sido preso ao voltar à Rússia em janeiro após meses se recuperando de um envenenamento.

Este texto, porém, não é sobre o resto do mundo.

As casas mais vigiadas do Brasil

Na última segunda-feira (1) nossos parlamentares elegeram a nova composição das mesas diretoras e os presidentes da Câmara e do Senado³. Rodrigo Pacheco (DEM-RO) e Arthur Lira (PP-AL) comandarão até 2022 as Casas mais repletas de reviravoltas e abalos sísmicos do Brasil — deixando o polêmico BBB21 no chinelo.

Ambos parlamentares foram patrocinados pelo Palácio do Planalto, que destinou R$ 3 bilhões a 285 parlamentares para aplicarem em obras de seus redutos eleitorais, em troca de apoio a seus candidatos no Congresso. Enquanto isso, uma traição que se desenrolava desde dezembro atingiu o coração da campanha de Baleia Rossi (MDB-SP): na véspera da eleição, o DEM, partido do qual o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia foi a grande liderança desde 2016, deixou o bloco de Rossi e liberou seus deputados a votarem em Arthur Lira.

Os ministros Onix Lorenzoni, da Cidadania, e Tereza Cristina, da Agricultura, são deputados federais licenciados e filiados ao DEM. Foto: Alan Santos/PR

Já escrevi em alguns textos que a política é feita de símbolos. Se o DEM já estava rachado (setores do partido se opõem ao presidente Jair Bolsonaro e outros são da base do governo) e o bloco de Baleia já vinha sendo ameaçado pela interferência sem precedentes do Executivo, a traição contra Maia debaixo de seu nariz e sua consequente humilhação pública, que contou até com blefe sobre impeachment, foi a cartada final para a consolidação de Lira.

Maia se apequenou e Bolsonaro levou mais uma. Mas estaria o governo nas mãos do Congresso ou o Congresso nas mãos do governo?

A verdade é que é uma faca de dois gumes. Se Bolsonaro comprou apoio a Lira por meio de emendas e cargos, também se vendeu ao centrão. Se conseguiu se livrar de um impeachment próximo, nada garante que conclua o mandato. Uma coisa é certa: o centrão não tem tanta paciência quanto Rodrigo Maia.

A história recente exibe o que ocorre quando presidentes de esquerda ou direita apelam ao centrão e suas marcantes figuras em troca de sustentação política: eles assinam um contrato, cuja única cláusula é nunca deixar de entregar o que for exigido. Alguns presidentes entregam tudo: Lula e Temer são bons exemplos. Outros, porém, têm um limite — seja ele ético ou ideológico. Foi o caso de Dilma. Quando o centrão cobra e o governo não entrega, o centrão mostra que não é amigo de ninguém. E quem não entrega não recebe. E cai. Na política e nas finanças pessoais, se endividar é um caminho sem volta.

A então presidente Dilma Rousseff cumprimenta o então presidente da Câmara Eduardo Cunha na abertura do ano legislativo de 2016. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Bolsonaro se endividou. E agora está nas mãos de Lira, Pacheco e suas turmas, e terá de entregar tudo que lhe for exigido — caso contrário, há mais de 60 pedidos de impeachment aguardando resposta na gaveta de Arthur Lira.

Entretanto, na política, ao contrário das finanças pessoais, ninguém faz uma dívida caso não seja extremamente necessário. Com o apoio do centrão e com aliados chefiando as duas casas do Congresso, Bolsonaro tem um caminho muito mais aberto para 2022. Suas pautas mais caras, como as de armas e costumes, serão tocadas com muito mais tranquilidade. Um processo de impeachment jamais será aberto, a menos que o presidente que hoje parece não ter limites ou escrúpulos encontre algo caro demais parar abrir mão. Seus filhos estão blindados nas comissões já aparelhadas na distribuição de cargos da Câmara.

A democracia na berlinda

Apesar de muitos analistas avaliarem que a política engoliu Bolsonaro e que o presidente não apresenta riscos, a verdade é que esses observam a política do passado. No já diversas vezes aqui citado “Como as democracias morrem”, os cientistas políticos norte-americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt afirmam que as democracias hoje raramente são solapadas em golpes cinematográficos e sangrentos, que acabam com as instituições democráticas em poucas horas. Hoje as democracias morrem aos poucos, geralmente nas mãos de políticos eleitos, que vão rasgando suas fibras pouco a pouco, enquanto aqueles que alertam para o autoritarismo são tachados de alarmistas e lunáticos, já que ainda existem eleições diretas, instituições sólidas, pessoas e veículos que criticam o governo.

Em 2011, uma pesquisa de opinião perguntou aos venezuelanos que nota dariam ao seu país entre 1 (nada democrático) e 10 (completamente democrático). 51% dos entrevistados deram nota acima de 8. Hugo Chávez já era presidente da Venezuela há 12 anos. Mas ainda ocorriam eleições livres, o Legislativo volta e meia era ocupado por opositores, noticiários criticavam abertamente o presidente. O que levaria os venezuelanos a crer que aquele não era um país democrático?

O ex-presidente venezuelano Hugo Chávez conversa com seu sucessor, Nicolás Maduro. Caracas, 2006. Foto: Fernando Llano/Associeted Press

Fato é que foi apenas em 2017 que a repressão e o controle do Estado se escancararam e a Venezuela foi reconhecida globalmente como uma autocracia, após uma Assembleia Constituinte comandada pelo governo suprimir os poderes do Congresso, 18 anos após a chegada de Chávez ao poder.

O que ocorreu nesse meio tempo? Jornalistas e políticos de oposição foram presos (sob acusações das mais diversas); veículos de imprensa foram fechados; milícias armadas foram organizadas e financiadas pelo governo; todas as estruturas do Estado foram loteadas; a composição da Suprema Corte foi alterada, beneficiando o governo. Isso tudo não ocorreu do dia para a noite, mas ao longo de 18 anos — o que deu a impressão de que tudo estava normal.

Para se ter uma ideia, o golpe militar de 31 de março de 1964 impôs ao Brasil uma ditadura de 21 anos. 2 dias de golpe e 21 anos de ditadura. Em 2020 completaram-se 21 anos de chavismo na Venezuela. Não uma ditadura de 21 anos: um golpe de 18 e uma ditadura de 3; um processo de desintegração da democracia que não durou 2 dias como no Brasil de 64, mas quase duas décadas.

Isso explica a tranquilidade de muitos analistas que se opõem ao bolsonarismo mas rejeitam a tese de que a democracia esteja em risco. Esses analistas, contudo, buscam vestígios não de um gradual desmembramento da liberdade, característica fundamental da crise democrática que o mundo experimenta; mas de um golpe de 2 dias. Isso nunca mais ocorrerá.

Quando a oposição acende o sinal de alerta constantemente, a população rejeita a tese. Ora, cadê esse tal golpe que nunca chega? Se não acende, ocorre o que ocorreu com nossos hermanos. Afinal, qual é o ponto exato em que um país deixa de ser uma democracia e se torna uma ditadura? Ninguém sabe ao certo.

O que sabemos é que alguns países citados no início do texto, como Venezuela e Hungria, assistiram sua liberdade se desmanchar dia após dia, enquanto outros, como Estados Unidos e Inglaterra, conseguiram manter sua democracia de pé. O que os diferencia?

Em outubro de 2020, os ex-presidentes uruguaios Pepe Mujica e Julio María Sanguinetti renunciaram juntos ao Senado. Em um gesto simbólico, os históricos adversários políticos decidiram que já haviam cumprido seu dever com o país. Foto: Pablo Porciuncula/AFP

Em primeiro lugar, um histórico de tradição democrática e normalidade institucional — o que não nos favorece nem um pouco. Enquanto a América do Norte e a Europa Ocidental possuem cerca de 2 séculos de democracia, a América Latina (incluindo o Brasil), possui pouco mais de 2 décadas. Há, porém, outro motivo — afinal, a história não pesa bem para o lado do Uruguai ou da Argentina, nossos vizinhos, que apesar dos tropeços e obstáculos conseguiram manter uma estabilidade política invejável diante do restante da região. Todos os países que conseguiram restabelecer ou resguardar a democracia em momentos de crise o fizeram com o mesmo ingrediente: um Legislativo forte e independente.

Por isso os eventos da última segunda-feira preocupam tanto os olhos mais atentos. Se nos Estados Unidos, com um Congresso dominado pela oposição, Trump conseguiu insuflar uma maré de extremistas a invadir um dos maiores símbolos da democracia no planeta, o que não conseguiria Bolsonaro com um Congresso omisso e aparelhado?

A Câmara dos Deputados foi o maior contraponto aos arroubos perversos do presidente nos últimos 2 anos. E hoje, a mesma Casa que criou uma agenda própria e independente do Executivo é comandada por um antigo aliado de Eduardo Cunha e réu por corrupção em duas ações no STF que, por isso, não fará parte da linha sucessória da Presidência da República. Hoje a mesma Casa que derrubou MPs, nomeações e projetos nocivos é chefiada por uma figura cuja primeira ação no comando da Mesa foi a sua dissolução, em um golpe injustificável e profundamente antidemocrático. Arthur Lira já mostrou a que veio. E já mostrou que sua ambição e sede por poder é maior que seu apreço pela institucionalidade e a cadeira que ocupa — mais uma semelhança com o inquilino do Palácio do Planalto.

Posse do Marechal Castello Branco como presidente da República em 1964. À esquerda, os presidentes do Senado, Auro de Moura Andrade, e da Câmara, Ranieri Mazzili. Ambos eram filiados ao PSD, partido de centro que controlou o Parlamento e dominou a política da época junto de PTB e UDN. Foto: Folhapress

O centrão muitas vezes pode ser um forte aliado indireto da democracia, pois, ao entrar em crédito com líderes populistas e de viés tirânico, desidrata o poder desses. Entretanto, ele não é uma garantia — prova disso é que o Legislativo que golpeou a jovem democracia brasileira nos anos 60 era comandado por dois políticos fisiológicos do que seria o “centrão” da época. Garantia de defesa institucional é institucionalidade, constitucionalidade, harmonia e independência entre os poderes. Pouco a pouco estamos perdendo tudo isso.

No primeiro dia à frente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira articularam a entrega das Comissões de Constituição e Justiça (CCJ) das duas Casas ao Palácio do Planalto. No Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), considerado fiel ao presidente e criticado pela forma unilateral com que presidiu a Casa, é o favorito para comandar a mais importante comissão; já na Câmara, ela pode ser presidida por Bia Kicis (PSL-DF), uma das mais fiéis apoiadoras do presidente, investigada no inquérito das fake news, negacionista pública da pandemia e defensora do voto impresso.

Kicis também é autora de um projeto que tenta reduzir a idade de aposentadoria dos ministros do STF de 75 para 70 anos. Caso aprovado, Bolsonaro teria possibilidade de indicar um total de 4 ministros até o fim de seu mandato. Caso reeleito, o presidente poderia indicar mais 3 ministros, garantindo a nomeação de 7 dos 11 componentes do Supremo — tentativa clara de loteamento da Corte, algo parecido com o que Chávez fez na Venezuela em 2006. Com a deputada encabeçando a CCJ, o caminho de um projeto como esse, que soa absurdo até para o mais fanático, será muito mais curto para uma eventual aprovação.

Deputada federal Bia Kicis utiliza máscara com as frases “Deixa o presidente governar” e “E daí?”. Foto: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

A CCJ tem como premissa básica a avaliação da constitucionalidade de tudo que tramita no Congresso, e por isso é a comissão mais disputada das Casas. Sendo assim, se o parecer da CCJ for contrário, projetos são derrubados antes mesmo de chegar ao plenário; assim como pareceres favoráveis dão luz verde aos textos. Além disso, a CCJ tem o poder de aprovar ou não a instauração de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), principal ferramenta do Legislativo para fiscalizar o poder público e o Executivo.

Além de blindar a família presidencial contra denúncias de corrupção e demais irregularidades, a ocupação das CCJs por Alcolumbre e Bia Kicis entrega diretamente ao Palácio do Planalto o poder quase absoluto das comissões mais importantes do Legislativo — e, portanto, cuja independência é mais imprescindível para o bom funcionamento da democracia.

Quem diria que aqueles que até ontem bradavam que o Brasil não viraria uma Venezuela seriam os próprios “venezuelizadores” do Brasil? Bolsonaro sabe exatamente o que está fazendo. A nossa democracia está em risco.

Notas de rodapé:

¹Leia mais sobre as reviravoltas recentes da política boliviana no texto “Bolívia, um ano após Evo Morales”, do também colunista de Política da Brado João Pedro Sabino Frizzera. Clique aqui.

²No texto “Dias de tensão na Europa: entenda o que há por trás dos protestos na Bielorrússia”, João Pedro Frizzera explica o recrudescimento da ditadura de Lukashenko. Clique aqui.

³Acesse o texto “O que está em jogo na disputa pela presidência da Câmara?”, publicado por mim em dezembro, e entenda algumas funções da presidência da Câmara e o que deu o tom da disputa entre Maia e Bolsonaro. Clique aqui.

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João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).