A falsa premissa norte-americana

A imagem de detentor da paz nada mais é que o combate a um fundamentalismo em nome de outro similar

Gustavo Dantas
Revista Brado
4 min readNov 12, 2020

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À esquerda o papa Francisco e à direita o presidente dos EUA Donald Trump. Foto: Reuters

O 11 de setembro; a explosão em uma cafeteria na França; o sequestro de meninas na Nigéria. Mesmo que promovidos por seitas diferentes, todos os atentados possuem uma mesma base: o fundamentalismo. A nossa bolha ocidental nos passa uma visão de que todas as ameaças à paz têm sua origem na “violência Islâmica”. Mas o que não enxergamos com clareza é que o maior deturpador e mais poderoso “vilão” do mundo é quem está nos guiando a pensar isso: o fundamentalismo cristão estadunidense, que tem início na crescente globalização (o American Way of Life é o melhor exemplo disso) com a influência norte-americana como ponto-chave para a educação ocidental, principalmente nas Américas.

O fundamentalismo moderno tem seu berço por volta de 1620 no protestantismo norte-americano, devido a um conflito entre os Pilgrims na Holanda e na Inglaterra, que exigiam uma reforma no Cristianismo. Nesse contexto, eles foram expulsos de seus países e migraram para os EUA. Esses, mais tarde, foram considerados os pais da pátria norte-americana. O fundamentalismo aparece mais tarde novamente com a publicação de uma série de livros, o “Fundamentals: a testimony of the truth”, que para os autores seriam fundamentais para a fé cristã da época e serviria como uma nova declaração dos fundamentos do Cristianismo. Esses partiam para uma premissa mais agressiva sobre as coisas, interpretando ao pé da letra diversas passagens e trazendo sua religião como pilar fundamental para o funcionamento do mundo.

Com o tempo, essa ideia mais radical através de uma interpretação própria, e muitas vezes literal, dos ensinamentos tornou-se comum no mundo. O Oriente, tomado por milhares de crenças, não ficara de fora. O mais comum para nós, sem dúvida, é o fundamentalismo islâmico, responsável pela ideologia de diversas seitas consideradas terroristas, como a Al Qaeda e o Estado Islâmico. Esses carregam a ideologia, na visão do teólogo brasileiro Leonardo Boff em sua obra “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz”, de que “os ocidentais são ateus práticos, materialistas crassos e secularistas ímpios”, enquanto o Ocidente tende a ver nos muçulmanos a “figura do fanático religioso e terrorista”. Ao fim de tudo, vira uma demonização mútua e no fim das contas a palavra fundamentalismo tornou-se termo de acusação dirigida sempre ao outro.

Quando pensamos em terrorismo a associação é direta ao fundamentalismo islâmico, mas o que nos esquecemos é do fundamentalismo que não está tão distante de nós: o cristão protestante, cultuado pelos EUA por um bom tempo. Essa vertente passa os ensinamentos de que todos aqueles que estejam privados desse ensinamento são vítimas de artimanhas demoníacas. Em contextos de colonização, essa forma de pensamento levou à destruição das Índias e a etnocídios de diversos povos nas Américas. Mas quando trazemos para um contexto atual, esses pensamentos ficam mais palpáveis. Um exemplo disso é o ex-presidente estadunidense George Bush, que viu em um círculo bíblico fundamentalista evangélico uma saída para diversos problemas que o assombravam.

Essas ideologias mais radicais sempre estiveram presentes nos Estados Unidos. Frases como “Deus designou o povo norte-americano como nação eleita para dar início à regeneração do mundo”, dita por Albert Beveridgeex, senador do Estado da Indiana, e “Deus salve a América” exemplificam essa problemática.

Quando analisamos essas situações de maneira conjunta é possível compreender por que Bush ignorava todos os tratados internacionais e agia por conta própria: na sua visão, ele tinha Deus ao seu lado. Então todos os artifícios possíveis seriam utilizados por ele para “acabar com esse mal” chamado Saddam Hussein, considerado por ele um anticristo.

Trump não é muito diferente. Depois do start dado por Bush nessa guerra ao terror contra os países do “eixo do mal”, observou-se, desde 2016, o retorno mais concreto do pensamento antigo da religião acima de tudo. Um desses países do eixo é o Irã, Estado que teve, no início de 2020, um de seus mais poderosos líderes mortos pelas forças norte-americanas: o general Qasem Soleimani, número 2 do governo iraniano. O atual presidente deixa sua religião bem à mostra e não tem medo que os outros o interpretem como radical em alguns aspectos. Isso influencia outros líderes motivados pela “direita evangélica”, que nada mais é que um sinônimo de menos impacto para “fundamentalismo”, a exemplo do atual presidente brasileiro.

Os Estados Unidos nos passam uma visão de um país que luta pela paz mundial baseada na democracia. Barack Obama fez esses movimentos no cenário internacional com maestria — seus principais credores são as indústrias bélicas. A guerra ao terror liderada pelos EUA nada mais é que um fundamentalismo sob o disfarce de bom samaritano detentor da paz. Joe Biden, o novo presidente eleito da superpotência, passa uma tranquilidade de quem luta pelos direitos individuais de todos, mas, assim como os anteriores, é só mais uma marionete da arma e da religião. Não acredite nas falsas premissas desses governantes.

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Gustavo Dantas
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais, colunista da revista Brado