A Guerra Fria do mundo muçulmano

É preciso voltar um pouco na história para que se entenda o que há por trás das disputas entre sauditas e iranianos

João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado
11 min readAug 6, 2020

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Entender a geopolítica do Oriente Médio não é uma coisa simples: existem variáveis demais, muitos atores agindo diferentemente, conflitos de pequena ou alta intensidade que rapidamente mudam a configuração local e pelo menos 100 anos de interesses conflitantes entre grupos locais e potências externas intrusivas. Particularmente nos últimos 20 anos, com o início formal da Guerra Mundial ao Terror pelos Estados Unidos, a complexidade e a gravidade dos conflitos e das rivalidades aumentou enormemente.

Para começar a entender um como funciona a geopolítica da região, seria preciso explicar, à luz da Teoria Realista de Relações Internacionais, alguns conceitos e ideias básicas que se mostram essenciais. O Realismo se traduz como uma escola de pensamento proeminente no estudo das Relações Internacionais. Para essa teoria, o poder é o aspecto central a ser analisado. Poder pode se constituir como uma ideia bastante fluida, podendo ser entendido como a soma das capacidades militares, políticas, econômicas e tecnológicas de um Estado, ou somente em termos relativos ao se comparar dois ou mais Estados. Ligada a esse conceito está a ideia de balança de poder: uma balança se forma a partir de dois ou mais atores, que julgam seu posicionamento a partir de seu interesse nacional. Isso significa que diferentes Estados terão diferentes atitudes quando confrontados com situações similares a depender do interesse e orientação de sua nação.

Ao se tratar da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, por exemplo, observa-se que alguns Estados lidaram com a situação de bipolaridade buscando alinhar-se com uma das duas superpotências, enquanto outros optaram por formar alianças que fizessem frente ao poder de ambas, dado o interesse nacional. De qualquer modo, observou-se a formação de um tênue equilíbrio de poder entre as décadas de 1940 e 1990, onde qualquer tentativa de criar vantagem clara vinda de um dos dois lados era vista com extremo temor pelo rival. O conflito direto entre os dois países era evitado a todo custo com o objetivo final de superar o rival sem a utilização de força em um embate direto, para evitar um desgaste extremo às suas próprias forças. Portanto, as duas superpotências passaram a lutar através de conflitos menores e localizados, chamados de guerras por procuração ou proxy wars, onde utilizaram do apoio e da força de entidades menores para ganharem espaço e influência em determinado país ou região. Essa prática não é restrita somente às superpotências e, como veremos, o próprio Oriente Médio não carece de exemplos.

Membros do exército sírio após desertarem para a oposição, em 2012. A Guerra Civil da Síria é reconhecida como um dos conflitos mais complexos da atualidade devido ao seu enorme número de atores e fatores em jogo. Países como Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia, Irã, Arábia Saudita, entre outros, utilizam diferentes facções no país para servir a seus interesses. Em suma, uma verdadeira proxy war. Foto: STR/AP

Nesse sentido, o poder também pode ser categorizado: o já utilizado termo superpotência se refere àquela nação que não apenas possui grande poder, o que a torna uma grande potência, mas que também possui grande mobilidade de poder para influenciar e projetar sua força em uma escala global. Assim, potências regionais são os atores que possuem maior poder em uma região geográfica ou uma região politicamente identificável, detendo maior concentração de poder militar e econômico, exercendo influência sobre outras nações da região e até além, e, talvez o mais importante, sendo reconhecido como líder regional por seus vizinhos.

O cenário atual do Oriente Médio é peculiar no Sistema Internacional: Enquanto boa parte das regiões geográficas possuem uma potência líder ou duas disputantes, a geopolítica do Oriente Médio é de dispersão do poder. No passado, o posto de liderança regional era reivindicado pelo Egito — que efetivamente se comportava como um líder — até os desastres militares nas guerras com Israel, em especial a Guerra dos Seis Dias (1967) e a Guerra de Yom Kippur (1973). Depois disso, os egípcios passaram para segundo plano nas relações com outros países árabes, muito por conta de sua aproximação com Israel, não conseguindo exercer liderança plena, então, se configuram hoje como uma potência voltada mais para o continente africano. Por conta desse distanciamento, a ideologia do pan-arabismo ou nacionalismo árabe defendida pelo líder egípcio Gamal Abdel Nasser entrou em crise em toda a região, criando espaço para a ascensão de novas concepções ideológicas, que hoje parecem dominar o espaço político regional.

Presidentes Anwar Sadat do Egito e Jimmy Carter dos EUA e o Primeiro-Ministro Menachem Begin de Israel no gramado da Casa Branca, Washington D.C, na cerimônia de assinatura dos Acordos de Camp David, que encerrou as hostilidades entre Egito e Israel, em março de 1979. Apesar de um importante marco para a paz entre árabes e israelenses, grupos mais radicais dos dois lados do conflito condenaram a aproximação. Em outubro de 1981, Sadat foi morto por um oficial do exército egípcio insatisfeito com os acordos de paz. Foto: AP

A partir da teoria e do cenário atual, podemos identificar pelo menos três diferentes países que mais se aproximam de um líder regional: Arábia Saudita, Irã e Israel. Os três países de fato exercem influência considerável sobre seus vizinhos, mas não possuem capacidade suficiente para coordenar os esforços regionais ou sequer levar a cabo uma agenda regional de integração, dificultando sua posição para ser considerado um líder. Em especial, Israel é considerado quase como um Estado pária, pois a sua mera presença ainda evoca questões mal-resolvidas como a fundação do Estado da Palestina e a ocupação de territórios na Cisjordânia, temas bastante sensíveis aos árabes na região.

De qualquer forma, como cada um desses Estados possuem distintas filiações político-religiosas, aproximações sérias são quase impossíveis, restando apenas a competição pelos recursos de poder na região para fazer valer sua visão de mundo. Essa complexa dinâmica constitui o que muitos autores chamam de a Guerra Fria do Oriente Médio, que hoje se faz presente em praticamente todo conflito moderno na região.

As disputas no sentido Arábia Saudita-Irã pela liderança do mundo muçulmano como um todo já levaram a região, em mais de uma ocasião, até a beira de um conflito de grandes proporções, inclusive com a presença dos aliados extra-regionais de cada um. Para melhor entender as verdadeiras dinâmicas dos conflitos atuais, vamos ver brevemente um perfil geopolítico e histórico dos dois países e fundamentar qual o seu papel na formação do complexo cenário geopolítico.

A começar, o Reino da Arábia Saudita é o maior país da região, se encontrando no coração da Península Arábica e sustentado por uma economia baseada enormemente no petróleo, recurso que possui em enormes quantidades. Esse recurso tanto permitiu o crescimento econômico do país como se tornou um pilar para uma aliança com os EUA e o Reino Unido, dando proteção ao país na eventualidade de uma guerra. Os sauditas fazem parte da vertente sunita do Islamismo, que segue o caminho trilhado pelo profeta Maomé e por seu sucessor Abu Bakr, do mesmo modo que seguem uma ideologia conhecida como Wahabismo, pertencente ao movimento Salafista. Essa ideologia se baseia em uma interpretação ultraconservadora e até fundamentalista dos escritos do Islã, que devem ser seguidos de modo estrito por seus seguidores. Por conta disso, a Arábia Saudita se encontra pouco disposta a aceitar a liderança de uma potência islâmica (e muito menos de uma potência não-islâmica) que seja “revisionista” sobre seus costumes.

No campo da política, essa concepção sobre a religião coloca a Arábia Saudita em uma posição ambígua: ao mesmo tempo que o regime busca a liderança e unificação entre todos os muçulmanos, também tenta fechar-se para questões alheias à sua filosofia e sociedade árabe, o que dificulta justificar a adoção de comportamentos vindos de fora ou de sua aliança com nações ocidentais, como acontece hoje.

Essa ambiguidade dentro do Estado saudita com sua própria orientação já criou severas contestações, que inclusive se manifestaram em graves conflitos até os dias de hoje. O maior caso disso certamente foi de Osama Bin Laden, que antes de se tornar o infame terrorista que conhecemos, era um saudita seguidor do wahabismo com fortes vínculos com a família real saudita, mas que se opusera violentamente à influência ocidental sobre os muçulmanos, desejando uma sociedade ainda mais “pura” e fechada aos estrangeiros.

Matéria do jornal britânico The Independent de 1993 destacando a atuação de Osama bin Laden na luta anticomunista no Afeganistão e sua vida posterior como empresário no Sudão, onde secretamente operava uma rede de terror transnacional. A matéria pode ser lida online aqui.

Essa visão de um mundo muçulmano fechado, puritano e longe das influências estrangeiras o motivou a apoiar a luta dos Mujahideen no Afeganistão durante o conflito com a União Soviética entre 1979–1989, onde recebeu apoio militar e econômico tanto dos sauditas quanto dos americanos na luta anticomunista, o que possibilitou o crescimento de seu grupo, a al-Qaeda. Um exemplo mais recente é o chamado Estado Islâmico do Iraque e do Levante ou Daesh, que também segue a filosofia do wahabismo. Ambos casos levantam suspeitas e desconfianças sobre a participação ou não dos sauditas no patrocínio do terror internacional, tornando suas ambições no sistema internacional improváveis no médio prazo.

Apesar desses problemas, a força econômica e política dos sauditas permitiu que tivessem, desde a paz entre Egito e Israel, maior capacidade em liderar as nações do Golfo Árabe, de onde o país faz parte. O país lidera em boa parte o Conselho de Cooperação do Golfo, que reúne seis outros Estados árabes, que buscam cooperação econômica e política. Para os sauditas, é um verdadeiro instrumento em que usam para evitar a influência dos iranianos em seu entorno, mas que nem sempre apresenta resultados positivos. Atualmente, os sauditas lideram uma coalização internacional no Iêmen, que passa por uma guerra civil entre forças sunitas e xiitas pró-Irã, conhecidas como Houthis. O conflito é visto como uma campanha militar desastrosa para a maioria dos observadores militares da região, que citam a falta de conhecimento militar dos sauditas entre as causas. Além desse conflito, Arábia Saudita e Catar se encontram em uma disputa diplomática desde 2017 devido ao apoio desse país a grupos reconhecidos como terroristas pelos sauditas, o que aproximou o Catar do Irã.

Do outro lado Golfo Persa (ou Golfo Árabe para os árabes…), a República Islâmica do Irã é uma teocracia xiita, uma vertente de menor adesão do que os sunitas, que defendem que Ali ibn Abi Talib, primo e genro do profeta Maomé, é o verdadeiro sucessor e líder dos muçulmanos. O país é governado tanto civis quanto por figuras político-religiosas conhecidas como Aiatolás, que atingiram o poder no país após a Revolução Iraniana de 1979, que derrubou o Xá Mohammad Reza Pahlavi. Após a revolução, relações com o Ocidente, com o Oriente e até com outros países muçulmanos chegaram a um nível extremamente baixo, deixando o país praticamente isolado do restante do mundo. A recém-nascida república islâmica em seu processo de formulação havia negado tanto o capitalismo quanto o socialismo, rejeitava a influência americana e denunciava a injustiça social no Oriente Médio e no restante do mundo.

No mesmo ano da revolução, o mundo enfrentou uma segunda grande crise energética, por conta da interrupção da produção de petróleo pelo Irã, o que jogou o preço mundial de combustíveis para as alturas. A retórica de hostilidade dos revolucionários contra as monarquias e governos seculares no Oriente Médio também causava preocupações em seus vizinhos, que temiam que caso um governo nestes moldes fosse concretizado, o Irã tentaria invadir outros países como forma de “exportar” sua revolução. Sendo assim, desde o princípio, o Irã sob um governo xiita é encarado como uma ameaça aos interesses econômicos da região, bem como um entrave à política saudita de reconfiguração do Oriente Médio.

Militar iraniano em uma trincheira, durante a Guerra Irã-Iraque. Assim como na Primeira Guerra Mundial, trincheiras e agentes químicos eram amplamente utilizados como tática de guerra. Foto: Autor desconhecido.

O fato de que o Irã havia se tornado o primeiro Estado abertamente xiita causava preocupação em especial no Iraque de Saddam Hussein, que tinha uma visão reminiscente do nacionalismo árabe. Em 1980, observando o caos que parecia dominar em seu vizinho, o Iraque realiza uma invasão contra o Irã, visando tomar terras ao sul onde havia grande produção de petróleo e uma boa parcela da população era de origem árabe. No entanto, o Irã não entrou em colapso como Saddam previa e obteve uma causa de união para a população, que conseguiu contra-atacar. A Guerra Irã-Iraque, como ficou conhecida, durou 8 longos anos, terminando em um empate, mesmo com o apoio internacional que o Iraque possuía.

Ainda durante o conflito com o Iraque, o Irã já passava a enxergar a si mesmo como um promotor da revolução xiita, posicionando a si mesmo como líder da libertação dos muçulmanos contra a dominação dos estrangeiros, por isso enxergava a necessidade de apoiar grupos com uma orientação similar. Durante a Guerra Civil do Líbano, que se iniciou em 1975, os iranianos apoiaram milícias xiitas para lutar contra as forças israelenses e internacionais que se encontravam no país. Uma dessas milícias foi o Hezbollah, que se tornou um dos grupos mais importantes no conflito libanês até seu fim, em 1990, e ainda possui atuação importante nos conflitos da Síria e Iraque. Posteriormente ao fim da Guerra Fria, o Irã encontrou a oportunidade de aproximar-se com os russos, chineses e norte-coreanos; estabelecendo laços de cooperação política e militar fora do mundo islâmico, onde podia ter melhores relações de comércio sem depender do Ocidente, pois esse levantou sansões comerciais após a revolução de 1979.

Militar estadunidense em meio aos escombros da embaixada dos EUA em Beirute, capital do Líbano, após um ataque à bomba em abril de 1983. O ataque foi promovido por membros da Organização da Jihad Islâmica e do Hezbollah, ambos apoiados pelo Irã. Foto: Bill Foley/AP

Nas últimas décadas, os conflitos na Síria, Iraque e Iêmen e a crise diplomática entre o Catar e Arábia Saudita foram grandes oportunidades de expansão da influência de Teerã, o que parece ter colocado pressão sobre Riade. Se após a revolução de 1979 o Irã estava completamente sozinho, o mesmo não pode ser dito atualmente, pois rapidamente cercou seu maior rival com grupos proxy.

Adicionalmente, o Irã é motivo de temor internacional por seu programa nuclear, que, entre avanços e interrupções, se aproxima cada vez mais de uma conclusão perigosa: depois de um difícil acordo finalizado em 2016 com Rússia, China, EUA, França, Reino Unido e Alemanha, os iranianos acordaram em desmantelar seu programa de enriquecimento de urânio, abrindo precedente para o fim das sações econômicas que afetam enormemente a economia local. No entanto, desconfianças sobre o quão eficiente o acordo seria para impedir a nuclearização do Irã tornaram a possibilidade de ratificação oficial do acordo cada vez mais difícil, até que em maio de 2018 os EUA retiraram-se oficialmente. Como consequência, o Irã também passou a atravessar os limites do acordo, efetivamente tornando-o inútil. A expectativa é de que dentro de alguns anos, se nenhum novo acordo for feito, o Irã consiga adquirir tecnologia nuclear doméstica, possibilitando seu uso para produção energética e bélica, o que tornará as relações do país com o Ocidente, com a Arábia Saudita e com Israel ainda mais hostis.

Por fim, conclui-se que o cenário contemporâneo na região é de extrema gravidade: no momento, dos 17 países do Oriente Médio, mais da metade se encontra em conflito interno ou externo. Há completa falta de orientação acerca de uma agenda de segurança ou de cooperação, tornando o comércio entre os países de baixo volume e as relações pouco intensas. Não à toa, a falta de comprometimento mútuo entre os Estados em meio à realidade dos conflitos modernos de rápida reconfiguração torna a região um local de baixíssima previsibilidade, impedindo um desenvolvimento social e econômico mais profundo, apesar das imensas riquezas que o petróleo poderia trazer. Na opinião deste autor, para evitar que o mal uso do poder na região cause uma tragédia maior como ocorre dia-a-dia na Síria, seria preciso que uma liderança mais moderada e comprometida com a segurança internacional surgisse na região e tivesse capacidade para liderar. No entanto, isso é algo completamente fora de questão no momento: muitos são aqueles que parecem estar dispostos a ir para a guerra, seja por dinheiro ou religião; mas poucos se dispõem a viver em nome de si mesmos.

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João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha | Colunista de Política da Revista Brado.