A importância da autorrepresentação das mulheres negras na política

As mulheres ainda são limitadas de ocupar cargos de poder, serem referências ou terem protagonismo nas decisões políticas. No caso das mulheres negras, a herança colonial escravocrata torna essa realidade ainda mais difícil

Karina Lima
Revista Brado
6 min readJul 10, 2020

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Marielle Franco (1979–2018)/ Foto: Reprodução
Marielle Franco (1979–2018)/ Foto: Reprodução

Embora seja profundamente sintomático que, ao levantarmos análises sobre figuras políticas no contexto nacional, mencionemos grandes heróis e quase nunca heroínas, há uma série de mulheres que lutaram pela emancipação política durante a história brasileira. Para algumas pessoas, o nome de Antonieta de Barros pode soar completamente inédito, mas ela foi a primeira mulher negra eleita deputada estadual no Brasil e a primeira deputada mulher no parlamento do estado de Santa Catarina em 1935. Durante a sua história, a ativista lutou por igualdade de gênero e racial, liberdade de expressão e pela educação como principal mecanismo de transformação social.

Antonieta de Barros (1901–1952) A primeira mulher negra eleita deputada estadual no Brasil/ Foto: Reprodução
Antonieta de Barros (1901–1952) Foto: Reprodução

Antonieta nasceu em Santa Catarina, 13 anos após o fim da escravidão no Brasil e era filha de uma ex-escrava com um jardineiro. Foi através da educação que a ativista pôde se libertar também da escravidão social que naturalmente lhe era imposta no período pós-abolição. Tornou-se professora e em 1922 fundou o curso de alfabetização que levou o seu nome. Além disso, por mais de 20 anos colaborou com os principais jornais de Santa Catarina, sendo alguns desses fundados por ela própria. Seu objetivo de ser professora não só foi alcançado, como foi considerada uma das melhores educadoras do seu tempo. Venceu preconceitos, mudou o destino que lhe foi pré-estabelecido e levou consigo a lei que instituiu o dia do professor (15 de outubro) e o feriado escolar (12 de outubro de 1948).

A linha tênue entre o progresso e o atraso

Há um abismo muito grande entre explicar o contexto de precarização do trabalho na vida das mulheres negras de modo plural e reivindicar que elas ocupem cargos de poder no Brasil. Assim como nossas congêneres brancas, o sexismo presente na política segue sendo um elemento fundamental para que continue havendo essa disparidade em relação aos privilégios dos homens brancos cis-hétero-normativos. No caso das mulheres negras, as opressões sofridas também pelo racismo tornam a realidade igualitária ainda mais distante.

Evidencia-se que as lutas identitárias estão se popularizando e ao mesmo tempo se pluralizando. Há, entretanto, uma meia dúzia de ignorantes que preferem negar que seja necessária uma reivindicação por parte dos oprimidos. E a crítica não é em relação à enorme parcela da sociedade sem acesso à tecnologia e aos meios de informação; o destaque mencionado vai para os desonestos intelectuais, que, mesmo com condições políticas educacionais, preferem viver na bolha do negacionismo.

A expressão do abismo citado acima está relacionado ao fato de ainda em 2020 recebermos notícias de que uma idosa negra de 61 anos foi resgatada em uma operação do Ministério Público do Trabalho (MPT) com a Polícia Civil de uma casa na Zona Oeste de São Paulo, onde era mantida em condição análoga à escravidão. A doméstica era vítima de maus tratos, constrangimentos, tortura psíquica, violência patrimonial e exploração de trabalho. Essa notícia mostra que é necessário um recorte de gênero, raça e classe na análise de progresso social alinhado com a situação das trabalhadoras racializadas. Quando levantamos análises sobre a necessidade de transformação de figuras nos cargos políticos, também falamos em relação a casos como este mencionado. Por que não as próprias mulheres negras para decidir ações governamentais que impactam suas vidas e a de suas semelhantes?

Contribuições de Angela Davis

Angela Davis discursando na Marcha das Mulheres em Washington, capital dos Estados Unidos, em 2017/ Foto: Reprodução

As pesquisas sobre libertação e emancipação para as mulheres negras giram em torno de uma compreensão de que é necessária uma transformação que garantirá direitos civis a todas elas — dentre os contextos socioculturais aos quais estão inseridas. Esses aspectos são bem contextualizados no livro “Mulheres, Cultura e Política”, de Angela Davis. A obra faz uma interconexão com as opressões de raça e gênero presentes na estrutura de dominação nos Estados Unidos e no mundo. A filósofa americana levanta análises sobre a emergência de uma virada emancipatória na qual essas opressões possam ser enfrentadas por todos e todas que acreditam nos direitos humanos e no direito das mulheres negras se autorrepresentarem.

Essas exaltações trazidas pela ativista e o reconhecimento de que a luta unificada das mulheres constituem potências políticas e culturais capazes de representar um manifesto inquestionável às forças globais do atraso e da opressão, tornam a leitura do livro obrigatória a quem tem interesse em conhecer e discutir propostas de democracia relacionadas com o feminismo e seus vínculos com a gestão de políticas públicas.

“A política não se situa no polo oposto de nossa vida. Desejemos ou não, ela permeia nossa existência, insinuando-se nos espaços mais íntimos.” — Angela Davis, em “Mulheres, Cultura e Política.”

A jornada de Marielle Franco

É impossível falar sobre o protagonismo de mulheres negras na política brasileira contemporânea sem citar Marielle Franco e toda a necropolítica da qual ela foi vítima. A socióloga teve uma importante participação na luta contra a desigualdade e por direitos da minoria social. Não há polarização política que justifique o assassinato sofrido por uma mulher negra, bissexual, periférica, cheia de sonhos e referência para tanta gente dentro e fora da política.

O ano de 2018, não coincidentemente o ano que levou Jair Bolsonaro à eleição presidencial e, junto dele, a sua família acusada de envolvimento com milicianos, foi também o ano do assassinato de Marielle. Seguimos há mais de 840 dias sem respostas de quem foi o responsável pelo assassinato da ex-vereadora e de seu motorista Anderson Gomes.

A causa que deu forças para Marielle iniciar militância por direitos humanos foi o fato de ter perdido uma amiga, vítima de bala perdida num tiroteio entre policiais e traficantes no complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Depois de seu assassinato, a repercussão também motivou milhares de pessoas com senso de justiça a reivindicarem direitos através da política, e, dentre elas, mulheres negras. Esta motivação ficou conhecida como “Efeito Marielle”. A importância de ter mulheres negras ocupando espaços de poder é inquestionável para a ampliação do debate público, mas é cômico que essas motivações de consciência política e social cheguem de forma tão agressiva à comunidade negra e periférica.

Mais de 60 anos após a morte de Antonieta, as três causas de sua luta permanecem sendo pautas pertinentes a serem alcançadas: educação pública e de qualidade a todos, valorização da cultura negra e emancipação da mulher. O alcance desses direitos deveria ser uma das prioridades dentro do parlamento. O fato de em 2020 ainda termos mulheres negras sendo vítimas de escravidão análoga na cidade considerada megalópole diz muito sobre o atual cenário da gestão política do Brasil e as consequências para as trabalhadoras negras. Isso porque eu nem citei o fato de ainda haver escravidão por dívidas no país — assunto profundo e que merece uma atenção especial, mas que basta apenas uma breve pesquisa sobre relações de trabalho que envolvem pessoas negras no campo para destrinchar.

Assim como Antonieta de Barros, a memória de Marielle Franco não pode ser apagada da história e deve ser referência para as próximas gerações, com o objetivo de sermos realmente a nova política — termo associado equivocadamente a candidatura de Jair Bolsonaro. Precisamos lembrar de Marielle como uma figura política que lutou pela emancipação social e, infelizmente, foi vítima das opressões sistêmicas, mas não precisamos de mais heroínas mortas pelo sistema. Precisamos de heroínas vivas, que tenham força e liberdade para lutar a favor da democracia popular.

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Karina Lima
Revista Brado

Estudante de Jornalismo (UFES) | Pesquisadora | Colunista da Revista Brado