A imunidade de rebanho à brasileira

Enfim os dias D e as horas H

Anderson Barollo Pires Filho
Revista Brado
6 min readMar 17, 2021

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Segundo o estudo da União Pró-Vacina (UPVacina), conteúdos falsos antivacina cresceram 131% nas redes sociais desde o início da imunização contra a Covid-19. Foto: Sérgio Lima/Poder 360

“A memória explica o presente”. Assim começa o meu último artigo do ano passado publicado nesta mesma Revista Brado: “As chagas de 2020”. Antes de seguir por aqui, te convido a revisitar essa leitura ou lê-la pela primeira vez clicando aqui.

Voltemos. A série brasileira “2020” chegou em sua 2ª temporada e, com ela, enredos ainda mais dramáticos preenchem a “programação” do brasileiro. Frustações, surpresas e alguns desfechos já esperados carregam o espectador a uma trama imobilizante.

A renúncia do Lucas Penteado no BBB 21, o chocante caso de Duda Reis e Nego do Borel, o bicampeonato brasileiro conquistado pelo Flamengo; tudo isso e muito mais (ou menos) vem mexendo com as emoções das brasileiras e brasileiros.

Mas calma. Este não é um texto sobre o “tudo isso” citado no parágrafo acima, mas sim sobre o “muito mais (ou menos)” de uma trama que vem imobilizando um país inteiro. Não dispenso os fatos supracitados pela falta ou não de relevância, mas sim pelo status de domínio do público da própria pauta.

Por falar em pauta… A pauta da imunidade

Na contramão do mundo, o Brasil vive hoje, um ano depois, a fase mais crítica da pandemia do novo coronavírus. Neste cenário, a Câmara dos Deputados apresentou um Projeto de Emenda à Constituição (PEC) com o seguinte tema: imunidade.

Para dar celeridade ao projeto, o novo presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) foi quem determinou a construção da nova emenda, designou informalmente alguns deputados para formatá-la e colocou a proposta em votação para avaliar a sua admissibilidade, ou seja, sua legalidade e constitucionalidade.

Em tempo recorde e sem passar por nenhuma comissão, no dia 24 de fevereiro, o plenário validou, por 304 votos a 154 e 2 abstenções, o parecer favorável do texto e agendou para o dia seguinte (25) uma sessão de pauta única para aprovar a tal PEC da Imunidade.

Todavia, o texto que os nossos ilustres legisladores estavam discutindo e aprovando não era sobre a imunidade ao vírus, tampouco sobre a política e logística de vacinação nacional ou sobre o retorno do auxílio emergencial. A imunidade que estava sendo pautada, naquele momento, era referente à imunidade parlamentar.

É válido pontuar também que, um dia antes (23), a Câmara dos Deputados havia aprovado uma Medida Provisória que facilitava a compra e o insumo de vacinas contra a Covid-19, além de introduzir novas medidas ao texto, como: a autorização da compra de vacinas pelos estados e municípios em caso de omissão da União; e estabelecer um prazo de 7 dias para a Anvisa conceder parecer sobre o imunizante. Ambas medidas foram vetadas pelo presidente da República. Na última semana, a Casa legislativa também realizou a votação da PEC Emergencial, referente ao pagamento de novas parcelas do auxílio emergencial. Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados

Em terra de “couto e homizio” ¹, impunidade é PEC

Apelidada, devidamente, como “PEC da Impunidade”, a primeira proposta do novo chefe do Legislativo sinalizou qual será o tom e as prioridades da Casa durante essa nova gestão.

Entre tantas proposições calamitosas que compunham o texto, estavam: o fim da prisão em flagrante em crimes afiançáveis (como corrupção); o fim do afastamento parlamentar por decisão judicial, só podendo ser realizado via Conselho de Ética da Câmara; o fim da busca e apreensão na casa e/ou no gabinete de um deputado; e a criação de uma espécie de “prisão parlamentar”.

Por sorte, e pelo empenho de alguns poucos parlamentares que obstruíram as sessões para retardar a “pauta relâmpago”, o presidente Lira recuou uma fase e mandou a PEC ser analisada por uma comissão especial, alegando “falta de consenso”.

Em resumo, a Câmara suspendeu a votação pois percebeu que, naquele momento, não iria conseguir todos os 308 votos necessários para aprovar o texto — faltou pouco, já que um dia antes 304 parlamentares aprovaram sua admissibilidade.

Não é de causar espanto que o presidente da Câmara, Arthur Lira — réu por corrupção em dois processos e já condenado em 2ª instância em um deles –, patrocine a ampliação do foro privilegiado.

Também não causa nenhuma surpresa que deputados como Aécio Neves (PSDB-MG) e Flordelis (PSD-RJ), essa com tornozeleira eletrônica, tenham votado sim para admitir a PEC.

Entretanto, o que também não sobressalta os olhos, mas que não deixa de ser curioso, foi o apoio e os votos favoráveis ao texto da “impunidade” de inúmeros parlamentares bolsonaristas, como Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Carla Zambelli (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF).

Primeira aspas: frase dita pela deputada federal, Bia Kicis, em uma live feita pelo seu perfil no Facebook, em 2018. Segunda aspas: tuíte do deputado federal Eduardo Bolsonaro em 2017. Terceira aspas: fala de Carla Zambeli em vídeo publicado em suas redes sociais em 2018/2019. Além dessas frases, há uma também do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, enquanto era deputado federal em 2017: “Quem precisa de foro privilegiado? […] O único prejudicado com o foro privilegiado sou eu, que não quero essa porcaria de foro privilegiado”, indaga o presidente ao lado do seu filho Flávio, que dois anos depois passou a gozar do foro. Crédito: Ilustração/Anderson Barollo

Enquanto Lira (réu por corrupção e, por hora, aliado de Jair Bolsonaro) dava seu cartão de visita com escolta e patrocínio da bancada bolsonarista, o presidente da República, por sua vez, estava se autodenominando “imbrochável”, criticando as medidas de prevenção e combate à pandemia e se isentando da sua responsabilidade perante a catástrofe sanitária nacional. Tudo isso, claro, aos gritos de “mito”.

Sincronicamente, o povo brasileiro se engajou, votou, e com 99,17% dos votos, assistiu a rapper Karol Conká ser eliminada do BBB 21 com a maior rejeição da história do reality.

Até o momento da publicação desse artigo, mais de 280 mil brasileiros morreram por covid-19 no país. Não são só números. São vidas. Famílias. Foto: Altemar Alcantara/Semcom

E por falar em povo brasileiro… 300 mil deles já se foram

Ao longo de 2020, não foram poucas as vezes nas quais a imprensa, as autoridades sanitárias, os profissionais da saúde, cientistas, filósofos, economistas e até mesmo alguns políticos alertaram sobre o tamanho do rombo que esta pandemia está causando no mundo.

No Brasil, esse rombo eleva-se à décima potência. No texto “Se puder leia², publicado em setembro do ano passado, aqui mesmo pela Revista Brado, eu disse:

“[…] Até aqui, as escolhas e medidas tomadas pelos nossos representantes dizem bem quais são suas reais preocupações e dão um panorama palpável sobre o que será o Brasil pós-pandemia: certamente um país pior do que o pré”.

Mais adiante, em dezembro, também pela Brado, escrevi em “As chagas de 2020:

“Brasil: solo (e hóspede) perfeito para um vírus de tal porte. Onde há milhares de problemas sempre haverá espaço para mais um. Em meio a tantas moléstias, surge a ação, a reação ou o conformismo”.

“[…] Muitos falam em segunda onda. Sequer saímos da primeira. Na verdade, a nossa segunda onda será um tsunami de consequências das nossas condutas, políticas e escolhas que tomamos hoje e ontem”.

O tsunami chegou. Mais de 2 mil mortes diárias por um vírus e o colapso do sistema de saúde. Crise sanitária. 14,3 milhões de pessoas sem emprego em meio à alta do dólar, da comida, do combustível, dos insumos e assim por diante. Crise econômica. Polarização, desgoverno e desarmonia entre as instituições. Crise política. Mortes, improdução, fome e desinteligência coletiva. Crise social.

Não é querendo ser nenhuma ave de mau agouro e muito menos um futurologista da desgraça que diz “eu avisei” que retomo e associo esses trechos e fatos. É para mostrar que tudo o que estamos vivendo agora foi anunciado em um passado recente. Não por mim, mas por nós, enquanto país.

Toda escolha tem consequências. Nós fizemos as nossas e cabe a nós, agora, arcar e saber lidar com elas. Como? Agindo? (Re)agindo? Se conformando? Não sou eu quem responde a isso.

Cinco boeings estão caindo todos os dia no Brasil, e nós perdemos a sensibilidade. Naturalizamos o(s) absurdo(s).

Diante de tudo isso, não é preciso sequer tomar uma vacina para virarmos jacarés. Já estamos na condição de animalidade, imunes da nossa própria consciência.

E para você, que chegou até aqui nesta leitura, o meu muito obrigado pelo tempo e atenção dedicada e o meu pedido de perdão pelo texto sem matriz, sem meão. De início, o intuito foi falar sobre a imunidade parlamentar. Acabei me desviando para a imunidade ao vírus e, por fim, me perdi na imunidade de rebanho à brasileira.

Notas de rodapé

Em terra de couto e homízio¹: Referência ao Brasil pré-colonial. Em 1535, o rei luso, D.João III declarou as capitanias brasileiras como “território de couto e homízio”, ou seja, uma região na qual crimes cometidos anteriormente em outros lugares ficavam instantaneamente prescritos e perdoados na terra tupiniquim. O Brasil, portanto, havia se tornado uma colônia onde os condenados de Portugal eram enviados para cumprir degredo.

Se puder, leia²: Artigo sobre a pandemia publicado pela revista Brado. Reforço o pedido, confira “Se puder, leia”.

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Anderson Barollo Pires Filho
Revista Brado

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