A influência audiovisual do Common Law

A retratação das séries e filmes de um sistema jurídico baseado nos costumes

Rodolfo Nascimento
Revista Brado
7 min readJan 8, 2021

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Diversos programas de televisão, séries e filmes retratam a vida e o meio jurídico atualmente. Desde How to Get Away With Murder até Scandal, existe a retratação de um direito que instiga e inspira diversas pessoas por todo o mundo. Por toda a influência oriunda de países de língua inglesa, parte das referências a respeito desse meio jurídico podem ser baseadas no sistema típico desses países, em parte divergente do nosso.

Annalise Keating e Olivia Pope são duas das principais personagens que retratam advogadas bem sucedidas e potentes sobre o sistema. Suas atrizes atuam sob um ambiente influenciado por outra normatização, por meio do Common Law. Ao assistir cenas de tirar o folego, com muita retórica e falas, pode existir uma certa concepção de como funciona o meio jurídico, entretanto, mudanças podem ser observadas para a realidade de outros países, como o Brasil.

Da esquerda para direita, as advogadas Olivia Pope (interpretada por Kerry Washington) e Annalise Keating (interpretada por Viola Davis), em um crossover das séries Scandal e How to Get Away with Murder. Imagem: Reprodução/ABC

Em um primeiro contato com a prática jurídica, seja pelos estudos ou pelo ingresso em um processo, podemos constatar algumas divergências entre ambos os sistemas. Isso se deve a um processo histórico e à influência do Direito entre diferentes povos e culturas. Díspar do Civil Law dominante em nosso ordenamento, a retratação em filmes e séries norte-americanas e inglesas se baseia pela predominância do que chamamos Common Law.

Middlesex Guildhall, sede da mais alta corte de apelação da Inglaterra. Foto: Christine Smith/Own Work

Common Law são os conjuntos de normas e regras não escritas, mas sancionadas pelos costumes ou pela jurisprudência, pelo conjunto de decisões judiciais em um mesmo sentido, emanadas por determinado tribunal, onde orientam e auxiliam determinada tomada de decisão.

Tal forma de Direito tem origem na concepção medieval inglesa que, ao ser ministrado pelos tribunais do reino, refletia os costumes comuns dos que nele viviam. Este sistema legal vigora no Reino Unido e em boa parte dos países que foram colonizados por este país, como Estados Unidos, Canadá, Índia e África do Sul. Logo, as grandes produções audiovisuais (em sua maioria norte-americanas) refletem uma concepção diferente da nossa, e diversas vezes podemos confundir o que é a realidade em nosso país da ficção televisiva norte-americana/inglesa. Apesar do constitucionalismo moderno e da força que a jurisprudência tem consolidado no cenário brasileiro atual, ainda existe um grande apreço e utilização das leis como principal base de nosso ordenamento, herdado principalmente do Civil Law, de origem romana.

Como dito, nosso atual sistema jurídico tem consolidado pontos do sistema inglês, e o uso da jurisprudência é uma realidade imutável. A invocação dos precedentes se faz presente nas decisões judiciais, na argumentação e interpretação das disposições e também são utilizadas como base de estudos. O Common Law representa a lei dos tribunais, como expresso em decisões judiciais. Além do sistema de precedentes judiciais, outras características do Direito Comum são o julgamento por júri e a doutrina da supremacia da lei.

O Júri (1861), pintura de John Morgan.

As questões devem ser resolvidas tomando-se como base sentenças judiciais anteriores. A reunião dessas sentenças sobre várias situações semelhantes permite extrair regras gerais que geram precedentes e que se convertem em orientações para o julgamento futuro dos juízes, em casos análogos.

Dentro do Common Law, as disputas são resolvidas através de uma troca de contraditórios de argumentos e provas. Ambas as partes apresentam seus casos perante um elemento julgador neutro, seja um juiz ou um júri. Este indivíduo avalia a evidência, aplica a lei adequada aos fatos e elabora uma sentença em favor de uma das partes. Após a decisão, qualquer das partes pode recorrer da decisão a um tribunal superior.

O Common Law é um regime de direito que teve origem na Inglaterra, no momento posterior à conquista normanda, em resultado, sobretudo, da ação normativa dos Tribunais Reais de Justiça. Na ausência de uma norma escrita, o precedente era, por vezes, o único documento jurídico que assentava uma possível solução oficial para o conflito, sendo certo, ainda, que o tratamento uniforme de casos semelhantes atendia à noção de justiça, pela satisfação do valor da igualdade.

Descendentes da Normandia, entre eles, Guilherme I, um dos principais nomes na Conquista normanda da Inglaterra. Imagem: Domínio Público

A ocupação romana começou a enfraquecer a partir do século XV, quando os bárbaros, entre eles os anglos e os saxões, iniciaram a conquista da Inglaterra e a colonização da ilha, que duraria quase dois séculos (400–600).

Como consequência do trabalho missionário desempenhado por Santo Agostinho de Canterbury, a Inglaterra foi novamente convertida ao cristianismo. Na Europa, o Império Romano do Ocidente havia caído na mão dos povos germânicos já há um século e o direito romano foi, de certa forma, recepcionado pelos novos governantes bárbaros. O direito inglês não teve fortes interferências do direito romano, a partir do século XII, nem pela codificação levada a cabo desde o início do século XIX.

A Inglaterra, isolada do continente europeu por essas e outras circunstâncias, começou a desenvolver uma tradição jurídica específica. Dessa tradição jurídica os costumes se consolidaram. Esse direito era inicialmente voltado para as questões de terras envolvendo o rei, seus barões e diversos proprietários e possuidores. Esse isolamento proporcionou ao direito britânico uma linha de continuidade histórica mais aprofundada, comparado aos países vinculados à tradição romano-germânica da Civil Law, como é o caso da maior parte dos países da Europa Continental.

Posicionamento geográfico da região que permitiu um isolamento do continente europeu. Imagem: Reprodução/SK

O sistema do Civil Law, que afeta diretamente o Brasil, influenciado pela colonização de países de origem europeia continental, pode ser definido como aquele baseado pela combinação dos antigos institutos jurídicos de Direito Romano. A sua principal característica, em comparação ao sistema inglês, consiste no fato de que as suas normas centrais derivam de codificações legais prévias que operam como fonte primária do Direito. A principal influência da Civil Law é o Direito Romano Clássico, como o Corpus Juris Civilis de Justiniano.

Embora sejam sistemas diferentes, como dito inicialmente, ambos têm se aproximado em suas tradições, proporcionando um direito contemporâneo dinâmico com a ascensão do constitucionalismo.

Pela promulgação da Reforma do Judiciário, o ministro Dias Toffoli lançou em 2019 o livro “Emenda Constitucional nº 45/2004: 15 anos do novo Poder judiciário”. Imagem: Reprodução/STF

Um dos exemplos mais presentes no ordenamento jurídico é a Emenda Constitucional nº 45/2004, popularmente conhecida como a reforma do judiciário. Em uma de suas mudanças, está a inclusão das súmulas que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, têm efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Esse instituto tem por objetivo a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou pela relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

Embora exista essa aproximação, que alguns doutrinadores atribuem como o surgimento de um sistema misto, é possível observar e delimitar diferenças quanto aos dois sistemas e como na prática podem ser completamente diferentes daquilo que assistimos nesses seriados e filmes. Pelas considerações, podemos observar como a história e a influência cultural transformam até o sistema jurídico, que rege e assegura os direitos e garantias de determinada sociedade. E esse direito vive em constante evolução, ainda nos dias de hoje.

Além das séries inspiradoras citadas, que refletem uma realidade diversa à brasileira, como recomendação, outras produções nacional também retratam o meio jurídico brasileiro e podem servir junto às demais de inspiração e molde de nosso ordenamento.

Irmandade (2019), disponível na Netflix, retrata a história de uma advogada que descobre que seu irmão, dado como desaparecido há anos, na realidade estava preso por liderar um grupo de crime organizado. A protagonista é obrigada por policiais a delatar o irmão, trabalhando como informante de dentro da facção.

Elenco da série brasileira “Irmandade”. Foto: Aline Arruda/Netflix

Carcereiros (2017), disponível no Globoplay, demonstra outro lado do meio jurídico: o sistema carcerário. A produção retrata a vida e as condições do sistema e o trabalho desempenhado pelos carcereiros nessa realidade.

Aruanas (2019), disponível no Globoplay, segue a vida de três amigas que trabalham em uma ONG de preservação ambiental. Embora o foco da série sejam os atentados a povos indígenas e conflitos de terra, uma das personagens principais é Verônica, interpretada por Taís Araújo, uma advogada que contribui com seu conhecimento jurídico para o ingresso de ações e atos legais para a proteção ambiental.

Uma das formas descontraídas para quem atua ou tem interesse pelo meio jurídico de ampliar os conhecimentos é consumindo séries e tramas que abordam temas desse meio. Esses seriados jurídicos trazem uma compreensão mais clara sobre a estrutura do Direito. Seja pelo Common Law ou pelo Civil Law, diversas são as opções de conhecimento e entretenimento.

Este texto possui informações do “História do Direito”, de José Fábio Rodrigues Maciel, do “História do Direito”, de Rodrigo Freitas Palma e “História do Direito”, de Débora Cristina Holenbach Grivot.

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Rodolfo Nascimento
Revista Brado

Capixaba. Estudante de Direito. Diretor de Pesquisa da Associação Atitude Ubuntu. Editor e Colunista da Revista Brado.