A lei da criança e do adolescente 40 anos depois de ‘Pixote’

No ano em que o Estatuto da Criança e do Adolescente comemora 31 anos, muitas mudanças ocorreram desde o lançamento do filme

Samara Elisa
Revista Brado
8 min readJul 21, 2021

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Foto: Reprodução/Pixote — A Lei do Mais Fraco

Em 1981, Hector Babenco lançava seu 3° filme como diretor, Pixote — A lei do mais fraco, inspirado no livro Infância dos Mortos, de José Louzeiro. A obra, ambientada em um reformatório de São Paulo, tem como objetivo retratar a trajetória do personagem principal, Pixote, desde o reformatório até sua fuga em busca de liberdade.

Hector diz que o que motivou a criação desse filme foi sua visita à Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) de Tatuapé. Em sua ida, deixou seu contato com algumas crianças do local, e assim que fugiram elas telefonaram para o diretor. Babenco foi ao encontro das crianças e quis retratar a história delas de alguma forma. Ele achou que seria uma boa ideia usar meninos de periferia para atuar no filme, não atores mirins já experientes. Um desses era Fernando Ramos da Silva, o Pixote. Vindo de Diadema, o menino tinha apenas 13 anos quando o filme foi lançado.

No filme, o garoto é levado para o reformatório aos 10 anos e presencia o tratamento negligente e violento por parte dos agentes. Violência física, verbal, uso de drogas, mortes e estupros estavam presentes no dia a dia daquelas crianças. Assim como a Febem de Tatuapé, rebeliões e fugas eram frequentes no reformatório do filme. Numa dessas fugas organizadas, Pixote se vê livre daquele local. Ele, Lilica, Dito e Chico, seus colegas do instituto, tentam a sorte no Rio de Janeiro, se arriscando entre vendas de drogas, assaltos e prostituição.

Pixote e seus colegas no Rio de Janeiro após a fuga. Foto: Reprodução/Pixote — A Lei do Mais Fraco

É interessante perceber como, mesmo sendo tratado como adulto em vários momentos do filme, muitas vezes o lado criança do protagonista aflora, seja quando ele sente vontade de tomar um sorvete de sobremesa, quando brinca com seus amigos de simular um assalto no reformatório ou até quando tenta mamar no peito de Sueli, como se sentisse falta de uma figura materna.

Pixote e Sueli. Foto: Reprodução/Pixote — A Lei do Mais Fraco

Até o ano de lançamento do filme, as crianças e adolescentes só possuíam o amparo legal do Código de Menores, instaurado em 1979, um desdobramento do código de mesmo nome de 1927, o primeiro destinado a crianças e adolescentes no Brasil. No entanto, esse código não era universal, mas destinado àqueles que estavam em “situação irregular”. O código definia essa situação como todo menor de 18 anos que era privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória; vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsáveis; em perigo moral; em privação de representação ou assistência legal; com desvio de conduta e autor de infração penal. Essa lei foi promulgada em um momento autoritário no país, por isso o intuito não era prestar assistência a esses menores, mas repreendê-los e isolá-los do convívio social como forma de coerção. Inclusive, uma das maiores críticas a esse modelo é a falta de diferenciação entre os menores que cometiam delitos e os que eram vítimas das condições de sua família: todos eram condicionados a essa mesma lei.

É interessante reparar também como algumas dessas definições eram vagas, como “estar em perigo moral” e “com desvio de conduta”. Essas designações estavam muito mais sujeitas a valores morais do que realmente um problema definitivo que devia ser enfrentado.

Uma das formas de punir esses menores “em situação irregular” era por meio de reformatórios, como é mostrado no próprio filme. O primeiro instituto criado a fim de tratar os menores infratores e abandonados foi o Instituto Disciplinar e Colônia Correcional, criado em 1902 em São Paulo. Devido à industrialização, houve um aumento de pais e mães que passaram a trabalhar em fábricas, passando grande parte do dia fora de casa e tendo que deixar as crianças sozinhas ou sob a tutela de algum irmão mais velho ou vizinhos. No início do filme essa realidade é mostrada por Hector, na comunidade de Diadema.

Anos depois essa lógica de isolamento infanto-juvenil como forma de punição para os infratores foi ampliada, e com ela veio a Febem, hoje Fundação CASA, uma das instalações mais famosas do Brasil. Localizada em várias cidades de São Paulo e depois espalhada pelo Brasil, a Fundação foi criada em 1964 e tinha por objetivo ser um local de reabilitação social para os jovens menores de idade que cometiam infrações penais. Assim como é retratado em Pixote, eram comuns agressões por parte dos agentes, rebeliões e superlotação. Esses foram os principais motivos para sua reformulação, em 2006.

Violências sofridas pelos adolescentes que estavam na Febem. Foto: TV Globo

Com a Constituição de 1988, o Brasil passou a dar maior importância para os direitos e deveres das crianças e adolescentes, graças à Convenção sobre os Direitos da Criança e a Assembleia Geral da ONU. Com isso, foi criado o artigo 227, que diz:

Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

No ano 1990, tendo como base o art. 227, foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD), juntamente com a participação de movimentos sociais. Os menores passaram a ser vistos como pessoas com direitos e as medidas tomadas com eles deixaram de ser somente repressivas, adquirindo um caráter educacional e não mais excludente. Está prevista no estatuto a proteção contra diversos tipos de violência e abuso, além de direito à educação, convivência familiar, alimentação, entre outros. A convivência familiar passou a ter uma maior importância, o que é essencial para a formação de todo indivíduo. Graças ao ECRIAD (antigo ECA), também foram criados os conselhos tutelares, responsáveis por garantir e zelar por esses direitos infantis.

É importante ressaltar que o estatuto continua sendo modificado conforme a sociedade muda. Com o avanço das tecnologias, passam a ser necessárias leis voltadas especialmente para os meios de comunicação virtuais, visto que as crianças são alvo de pedofilia a todo o momento. Em 2008, foi realizada uma alteração legislativa no ECRIAD, buscando aprimorar o combate à produção e distribuição de pornografia. A Lei nº 11829/08 definiu como criminosa a posse e aquisição de materiais relacionados à pedofilia.

Capa do relatório em comemoração aos 25 anos do ECRIAD. Foto: Reprodução/UNICEF

Em 2015, para comemorar os 25 anos do ECRIAD, a UNICEF preparou um relatório com as mudanças que ocorreram desde a instauração do Estatuto, e também com sugestões do que pode ser melhorado para avançarmos ainda mais. Entre esses progressos, podemos citar a queda de 68,4% da taxa de mortalidade infantil entre 1990 e 2012, chegando a 14,9 mortes para cada mil nascidos vivos, de acordo com o Ministério da Saúde.

Outro percentual que vale a pena ser destacado é o de diminuição do número de crianças entre 5 e 15 anos trabalhando. Entre 1992 e 2013, o número caiu de 5,4 milhões para 1,3 milhão, de acordo com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). Vale ressaltar que ainda há a subnotificação de dados, ou seja, esses são os que chegaram aos órgãos oficiais, mas ainda há muito a ser feito para que esses números diminuam cada vez mais.

Apesar de tantos avanços, alguns ideais vindos da época em que as crianças eram vistas como em “situação irregular” ainda estão presentes na nossa sociedade. Não é incomum nos depararmos com debates a respeito da diminuição da maioridade penal, por exemplo. O argumento é que um adolescente de 16 anos já tem total discernimento sobre suas ações, sem levar em consideração todo o pano de fundo que os leva a ações criminosas. Esse discurso é muito exaltado pelo governo atual: há dois anos o presidente da República apoiava a aprovação PEC que diminui a maioridade penal de 18 para 16 anos em caso de crimes de extrema gravidade. Bolsonaro também já criticou o ECRIAD após afirmar que os filhos aprenderam a atirar com 5 anos. Esse discurso, vindo de uma pessoa com influência e poder, é extremamente perigoso, já que podemos retroceder esses 31 anos com muita facilidade.

Devemos comemorar cada avanço que é alcançado para as crianças e adolescentes e lutar cada dia mais para que o progresso seja constante. Para continuarmos seguindo à frente com essas questões é necessário também que a população de uma forma geral mude algumas opiniões. Tendo em vista que muitos pais de hoje nasceram na época em que esses direitos não estavam em vigor, para eles acabam se tornando comuns alguns comportamentos que não cabem mais.

Exemplo disso é a Lei da Palmada, estabelecida em 2014 dentro do ECRIAD, que proíbe castigos físicos para crianças e adolescentes. Na época, houve uma divisão de opiniões e muitos pais foram contra, alegando terem recebido palmadas durante sua infância, reproduzindo, assim, o que aprenderam há décadas.

O ator que interpretou Pixote, Fernando Ramos da Silva, teve uma trajetória de vida tão trágica quanto a de seu personagem. Aos 19 anos foi assassinado por policiais militares após uma perseguição. Os policiais estavam atrás do responsável pelo roubo de uma empresa em Diadema, onde o jovem morava. Após o avistarem junto de outro adolescente, iniciaram a perseguição, sem nenhuma prova de que eram os culpados. Fernando conseguiu se esconder debaixo de uma cama em uma moradia coletiva, e mesmo estando desarmado os policiais o assassinaram a sangue frio com 8 tiros. Infelizmente, essa é a realidade de muitos jovens de periferia diariamente até hoje, após mais de 30 anos do ocorrido.

Fernando na época de gravação do filme. Foto: Ayrton de Magalhães

Historicamente, é possível perceber que os abandonos, maus tratos e negligência com as crianças e adolescentes estão muito mais relacionados aos problemas estruturais enfrentados pelo nosso país desde o início de nossa história do que diretamente sobre as ações dos próprios infratores menores de idade.

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