A miséria criminalizada

Com 65 milhões de pessoas com insegurança alimentar e fome, Brasil vive fome generalizada

Lucas Kalil
Revista Brado
4 min readNov 29, 2021

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Foto: Mariana Castro

“Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.”

O poema “O Bicho”, de Manuel Bandeira, denunciava desde 1947 a miséria do povo brasileiro. Mais de 70 anos depois, a realidade continua a mesma, como se evidencia em cada esquina, em cada manchete de jornal. Na última semana, por exemplo, os grandes veículos de imprensa brasileiros noticiaram o caso de uma mulher presa por cerca de 100 dias por furto de água. Ela foi presa ao violar o lacre que impedia o fornecimento de água na casa simples e miserável — para dizer com os termos da defensora pública — a fim de realizar os afazeres domésticos e matar a sede sua e de seu filho de 5 anos. Teve sua prisão preventiva revogada somente após chegar ao Supremo Tribunal Federal, por meio do Habeas Corpus n° 208.999-MG, por entender-se tratar de medida demasiadamente desproporcional ao caso em questão.

Outro caso que ficou famoso foi o da mãe que, após furtar um refrigerante, um suco em pó e dois macarrões instantâneos — totalizando R$ 21,69 — foi presa e somente teve sua liberdade concedida após recorrer ao Superior Tribunal de Justiça, que baseou sua soltura no princípio da insignificância, tão pertinente nesses casos.

Essas hipóteses demonstram não somente a miséria sobre a qual são esmagados cerca de 65 milhões de brasileiros, mas a ânsia punitiva sobre os mais frágeis. Enquanto esquemas de compra de deputados são desmascarados e aviões institucionais abarrotados de cocaína vão de lá para cá, a luta por sobrevivência é criminalizada diariamente.

Analisando-se o ser humano em suas necessidades mais elementares, constata-se que todos — não obstante as diferenças culturais, religiosas ou econômicas — precisam basicamente do mesmo para sobreviver, a saber, água e comida. Nesse sentido, adoto a visão defendida pelo filósofo estadunidense John Rawls sobre a justiça, a qual seria minimamente alcançada quando se garantisse a todos pelo menos o básico para que conseguissem sobreviver dignamente. Numa sociedade capitalista, a selvageria inerente a esse sistema econômico deveria ser adestrada por meio de leis que garantissem uma distribuição mais justa de renda, de forma a mitigar a tão desumana, antiética e brutal desigualdade mortal de condições à sobrevivência. Digo mortal, pois, ainda que sempre haja desigualdades — já que essa condição é inerente a qualquer organização social, seja ela capitalista ou não — não é normal e muito menos aceitável sob a perspectiva ética, moral e constitucional, que ela seja tamanha a ponto de se ter de catar lixo ou cometer um ilício para matar a fome, enquanto nossos governantes abusam do sofrimento do povo para ir à Dubai.

Decerto, furto é crime e deve ser penalizado. Ocorre, porém, que a própria Constituição cidadã prevê a dignidade humana como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, já em seu art. 1°. Convenhamos que, para se ter dignidade é preciso, primeiramente, estar vivo! Além disso, o art. 6° da CF/88 diz que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Assim sendo, como agir entre a cruz e a espada, quando não se tem o mínimo para sobreviver, mas a lei criminaliza o furto?

É claro que a descriminalização do furto, previsto hoje no art. 155 do Código Penal não é um caminho viável e se há defensor dessa medida, sujeito são não é. No entanto, há casos e casos. No já mencionado processo da mulher presa pelo furto de miojo, por exemplo, o STJ, no HC n° 699572 -SP, valeu-se do princípio da insignificância para determinar sua soltura.

Esse princípio afasta a tipicidade do fato em razão de a conduta ter sido tão infimamente ofensiva, sem periculosidade social e, portanto, sem expressiva lesão, de forma que puni-lo seria injusto. Isso não permite, por exemplo, que se saia por aí furtando guloseimas de padarias, pois, afinal de contas, a lesão é mínima. Não! O princípio existe para que sua correta aplicação no caso concreto impeça que pessoas como as citadas nos exemplos anteriores sejam ainda mais injustiçadas numa sociedade que já as priva de sua dignidade.

É triste e revoltante pensar que, em 2014, o país que saía do mapa da fome, com cerca de 98,3% com segurança alimentar, volta hoje a ter pessoas catando lixo para não morrerem de fome, enquanto o presidente gasta rios de dinheiro com picanha e leite condensado.

Pessoas revirando lixo em busca de comida. Reprodução/Poder 360/YouTube

O povo, em sua miséria, padece tal como o homem confundido com animal do poema de Manuel Bandeira, contrariando todos os princípios da República, da democracia, da ética e, inclusive, do cristianismo, crença da qual imensa parte de nossos governantes diz fazer parte. Há, no entanto, luz no fim do túnel; basta que ajamos desde agora e não deixemos a mudança para depois! Transformemos nossa indignação em combustível para denunciar, ajudar, mudar, pois, apesar deles, amanhã há de ser outro dia. Basta que queiramos.

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Lucas Kalil
Revista Brado

Estudante de Direito e de Filosofia, colunista de Justiça da Revista Brado, além de eterno admirador e crítico da vida