A rejeição de Decotelli no MEC realmente ilustra o racismo à brasileira?

O caso Decotelli evidenciou que para ser Ministro no Brasil, não se pode cometer erros, a não ser que você seja branco. O quase-ministro não foi desculpado por fraudes e inconsistências curriculares como os outros representantes

Karina Lima
Revista Brado
4 min readAug 7, 2020

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Foto: Reprodução/Twitter

Intencionalmente deixei uma pergunta no título com o objetivo de propor uma reflexão racial na análise da conjuntura política insana que nos assola. Enfatizar que o racismo é uma estrutura de dominação nos promove pensar para além do que o senso comum define esse sistema de poder, analisando-o, portanto, em suas variáveis sutilezas enraizadas socialmente.

Adianto que é imprescindível que eu destaque também o meu ceticismo quanto à representatividade negra no caso de Carlos Decotelli — por ele ser o primeiro homem negro que iria ocupar o cargo. Nessa altura do campeonato, após diversas comprovações de irresponsabilidade somada com instabilidade política no governo Bolsonaro nessa crise pandêmica, qualquer figura política — inclusive que ocupe cargo ministerial — que se diz apoiador ou apoiadora desse governo tem um caráter duvidoso, independentemente de sua identidade racial. Entretanto, não é um fator que isente o personagem de sofrer racismo, e é isso que vai ser discutido no texto.

Dois pesos e duas medidas

Envolto no período de debates globais relacionados a questões raciais após a morte de George Floyd, o presidente Jair Bolsonaro anuncia o novo ministro da Educação do Brasil. Carlos Decotelli seria o sucessor de Abraham Weintraub e se tornaria o primeiro homem negro a ocupar o cargo. No entanto, Decotelli não chegou a assumir o ministério.

No começo da semana em que foi nomeado, o governo decidiu adiar a cerimônia de posse após uma crescente polêmica gerada por uma série de notícias alegando fraudes curriculares e outras inconsistências. Na contramão do anúncio do então presidente da República, foram descobertas informações falsas no currículo acadêmico do ministro nomeado da Educação.

Primeiro, a Universidade de Rosário, na Argentina, negou que o professor tivesse concluído o doutorado na instituição. Em seguida, a Universidade de Wuppertal, na Alemanha, também contrariou as informações do currículo acadêmico do professor, que alegava que ele teria feito um pós-doutorado na instituição. O estopim para a revogação da nomeação ao Ministério da Educação aconteceu quando a FGV enviou nota à imprensa negando que Decotelli tivesse sido “professor de qualquer das escolas da Fundação”. No entanto, há controvérsias quanto à alegação da FGV, que depois corrigiu alguns equívocos.

Paradoxalmente, antes de ser ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves disse em diversas palestras em igrejas que era mestre em temas ligados ao Direito e à Educação. Após a posse, Damares foi questionada sobre a ausência de um currículo Lattes e, ao ser confrontada, acabou confirmando que não fez mestrados acadêmicos.

Além disso, Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente, também teve um mestrado na Universidade de Yale negado após apuração da grande mídia. Após a divulgação, Salles atribuiu o erro à sua assessoria de imprensa. Já Abraham Weintraub, antecessor de Decotelli no MEC, chegou a ser apresentado pelo presidente nas redes sociais como Doutor. A mudança na apresentação só mudou após o questionamento da informação e, então, Jair Bolsonaro corrigiu alegando que Weintraub na verdade era mestre em administração e finanças. Ao contrário do caso de Decotelli, as informações falsas dos outros representantes do ministério não foram motivo de polêmica, tampouco problemáticas o suficiente para fazer com que não fossem capacitados para os cargos — o que, na visão do quase-ministro, explicaria o racismo à brasileira.

Armadilha do racismo

Dr. Silvio Almeida, autor do livro “Racismo Estrutural”. Foto: Reprodução/Google

Decotelli tem razão ao afirmar que foi vítima de racismo. O seu caso ilustra o que o advogado e professor Universitário Silvio Almeida, autor de “Racismo Estrutural” chama de “armadilha do racismo”. Ou seja, além de Decotelli ter tido um tratamento diferente dos representantes brancos e nem sequer ter ocupado o cargo, ainda teve seu trabalho ridicularizado pela mídia e pela sociedade racista — que fizeram questão de atrelar sua imagem a um negro medíocre. Nota-se que quando acontece essas questões de racismo na política, o impacto na vida das pessoas racializadas é refletido de maneira negativa para o progresso no debate racial. Em entrevista à Folha de S. Paulo, o Doutor Silvio Almeida também afirmou que “o racismo está presente nas relações de poder e na política de maneira fundamental, especialmente em um contexto político conflagrado, em um governo de extrema-direita”.

Carlos Alberto Decotelli — Foto: Reprodução/O Globo

Apesar de Decotelli compactuar com a gestão política do governo bolsonarista e querer fazer parte do time mesmo tendo cometido os mesmos erros de algumas figuras políticas, o abismo racial o limitou. A verdade é que fraudes curriculares e os plágios estão por toda parte no governo federal — basta uma pesquisa no Google para confirmar. A diferença é que se Decotelli tivesse consciência racial, não aceitaria o convite, pois era óbvio que iam investigar seu currículo e que a estrutura de dominação corrupta e hipócrita desse país jamais permitiria um erro desse porte vindo de um negro.

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Karina Lima
Revista Brado

Estudante de Jornalismo (UFES) | Pesquisadora | Colunista da Revista Brado