A República “pastel com caldo de cana”

Jabuticaba, paçoca, tomada de três pinos e Jair Bolsonaro: coisas que você só encontra no Brasil.

Anderson Barollo Pires Filho
Revista Brado
3 min readJun 15, 2020

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Púlpito presidencial do Palácio do Planalto vazio. Fotografia: Eduardo Anizelli/Folhapress

Termo pejorativo e popularmente conhecido por tipificar países latinos — em especial os da América Central –, a “República das Bananas”, em resumo, caracteriza países com instituições governamentais fracas, corruptas, elitistas e oligárquicas.

Por sermos um país de abrangência continental e — por hora — a 8ª economia do mundo, seria quase que uma desonestidade intelectual introduzir tal epíteto para a nossa pátria “Salve! Salve!”.

A presença de políticos em feiras livres para comer um pastel com caldo de cana é uma prática tradicional de candidatos em períodos eleitorais. Fotografia: Renato Cerqueira/Folhapress

Mas como “bons brasileiros”, temos nossas singularidades. Por hábito, adjetivamos e rotulamos quase tudo que vemos pela frente. Sendo assim, noto que merecemos um estereótipo à brasileira, original: “pastel com caldo de cana”.

De fato, carregamos uma série de heranças malditas no campo social, cultural e político desde 1500. Mas, talvez, esse atavismo nunca foi tão potencializado, simbolizado e banalizado como nos dias atuais.

Esse momento de entreato é excêntrico, incomum, sensível e, ao mesmo tempo, repetitivo, mais do mesmo e previsível. Mas, devo insistir: tem coisas que você só encontra no Brasil.

Wilson Witzel (PSC) e a primeira-dama Helena são alvos de investigações de irregularidades no RJ. Segundo a PF, há indícios de desvios e repasses de verbas na construção de hospitais de campanha. Parlamentares apontam que essa é a primeira de muitas investigações que serão conhecidas como “COVIDÃO”. Fotografia: Gabriel de Paiva/Agência O Globo

A novilíngua do Jair

No célebre romance distópico “1984”, de George Orwell, o governo autoritário cria um idioma fictício com o intuito de restringir a capacidade de raciocínio da população. Reinventar, inverter e até mesmo remover sentidos e valores das palavras é basicamente o que caracteriza a novilíngua ou o duplipensar da obra de Orwell.

Já na terra tupiniquim, em 2020, prevalece aquela máxima de João 8:32: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Mesmo que, para isso, seja necessário alterar raciocínios lógicos e até mesmo omitir dados oficiais sobre o número de mortes causados pela pandemia.

Um vírus vira ideologia, uma fake news torna-se liberdade de expressão, pedir fechamento de uma instituição converte-se em ato democrático e uma manifestação contra o governo é tipificada como terrorismo.

Jair Bolsonaro discursa em cima de um carro em ato com faixas pedindo intervenção militar. Fotografia: Pedro Ladeira/Folhapress

E tem mais: o antes “toma lá, dá cá” agora é governabilidade, o artigo constitucional feito para salvaguardar a independência dos poderes converte-se em garantia golpista e a interferência na Polícia Federal se transfigura em segurança individual.

Nessa temerária guerra de narrativas do “nós” e “eles”, do diálogo único e direto para com seu extremo (sem mediações), o território bélico não só floresce como prevalece.

A síndrome de perseguição — onde tudo e todos são seus inimigos — , a demonização de adversários e o loteamento de cargos públicos para o chamado “centrão” não são nenhuma novidade, mas um vício populista.

“Agora perceberam que o croclodita que eles elegeram não deu certo (…) Estou dizendo para a gente não pegar o primeiro ônibus que está passando” tuitou o ex-presidente Lula se referindo às manifestações pró-democracia no início de junho. Jair Bolsonaro foi eleito com 55% dos votos válidos no 2º turno de 2018. Fotografia: Ricardo Stuckert/Instituto Lula.

No fim, eles se retroalimentam. Mas antes, há um meio: uma maioria que vem sendo esmagada pelos extremos, que continua “assistindo a tudo bestializado, atônito, surpreso, sem saber o que significa”, como bem relatou o jornalista Aristides Lobo, após o golpe militar de 15 de novembro de 1889, também conhecido como “Proclamação da República”.

Nesse meio-tempo, o “parquinho pega fogo” e seguimos com nosso tradicional pastel com caldo de cana. Porém, é oportuno lembrar que ainda estamos no centro do entreato.

meios para mudarmos o cenário da peça.

“Traidor da Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério…”, disse o presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, Ulysses Guimarães, em discurso da promulgação da Carta Magna. Fotografia: Lula Marques/BBC News Brasil

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Anderson Barollo Pires Filho
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