A saúde mental por trás das obras de Van Gogh

Carolina Miôtto Castro
Revista Brado
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4 min readJul 15, 2020
(Photo by Руслан Гамзалиев on Unsplash)

É indiscutível a beleza das artes de Vicent Van Gogh, pintor holandês do século XIX, famoso por obras como “Os girassóis”, “A noite estrelada” e “Autorretrato”, dentre tantas outras, que demonstram um pouco da sua técnica de pinceladas carregadas de tinta que inovaram o conceito de arte dos séculos seguintes.

Entretanto, mesmo com grande talento, ele teve uma vida difícil, composta por romances malsucedidos, incompreensão por parte da sociedade de suas obras e, acima de tudo, um transtorno mental que o atormentou por toda sua vida, até seu falecimento aos 37 anos. Ainda hoje não se sabe ao certo qual doença afligia Van Gogh, porém uma das hipóteses é de que o pintor apresentava o transtorno bipolar, doença cuja conscientização é celebrada mundialmente no dia 30 de março, data de seu nascimento. Tendo em vista a complexidade desse transtorno mental, é de vital importância o seu conhecimento para a redução de estigmas e preconceitos e para contribuir no diagnóstico precoce e em um tratamento eficaz.

A obra retrata a vista da janela de um quarto do hospício de Saint-Rémy-de-Provence, pouco antes do nascer do sol. (Vicent Van Gogh, A noite estrelada, 1889, óleo sobre tela, Museu de Arte Moderna, Nova Iorque, EUA)

Primeiramente, o transtorno bipolar deve ser entendido como um transtorno afetivo, ou seja, um distúrbio do humor, e não uma alteração da personalidade (esta, na verdade, caracteriza o transtorno de personalidade). É uma doença crônica que pode ocorrer em qualquer faixa etária e acomete igualmente homens e mulheres. Conceitualmente, o transtorno é definido pela presença de episódios maníacos e episódios depressivos.

Mas, afinal, o que é um episódio maníaco?

Bom, de forma simplificada, seria um período de perturbação do humor, na qual o paciente apresenta grande euforia e irritabilidade; autoestima extremamente elevada e presença de planos excessivamente ambiciosos (acreditando, por exemplo, ser um enviado de Deus para salvar a humanidade ou o responsável por criar uma máquina que irá resolver a maior crise mundial existente); pensamentos acelerados; atenção desviada facilmente; necessidade de sono diminuída (chegando a dormir cerca de 3 ou 4 horas por noite e não sentir sono no dia seguinte); grande atividade física e mental (sendo capaz de trabalhar por horas); e, além disso, envolvimento excessivo em comportamento prazeroso (podendo, em casos graves, gastar todo dinheiro em compras, usar roupas em combinações incomuns ou extravagantes, ou mesmo se despir em lugares públicos). O paciente apresentará a maioria desses sintomas na maior parte do dia em pelo menos uma semana.

Essa fase de mania, na grande maioria das vezes, é intercalada com episódios depressivos, cujas características essenciais são humor deprimido e perda de prazer em realizar atividades, inclusive aquelas que sempre foram prazerosas para o indivíduo.

(Photo by Adrian Swancar on Unsplash)

Qualquer pessoa pode apresentar uma variação de humor, isso é uma condição inerente ao ser humano. Entretanto, a partir do momento que tais sintomas causam prejuízo à vida do indivíduo, tanto pessoal quanto profissional, e não podem ser explicados por nenhuma outra causa, aí sim deve-se pensar num diagnóstico para o paciente e o tratamento mais adequado.

Na grande maioria das vezes, a presença de um transtorno mental, independente de qual seja, está relacionado à modificação da percepção do paciente como indivíduo social, bem como na mudança de atitudes da sociedade para com ele, gerando estereótipos e estigmas que prejudicam não só a vida pessoal do paciente, como também atrasam o diagnóstico correto.

Não se pode esquecer também que o desconhecimento sobre uma determinada condição faz com que as pessoas tomem atitudes drásticas por medo de que elas possam ser afetadas por este “mal”. Isso pode ser muito bem exemplificado pelas internações de Van Gogh, cuja principal causa foi o medo da sociedade quanto às atitudes perigosas que ele poderia tomar. Tal temor demonstra uma concepção errônea de que “escondendo o problema” ele deixa de existir, fato que infelizmente persiste ainda hoje e prejudica na inclusão dos indivíduos com transtorno mental na sociedade.

Compreendidas as características do transtorno, é impossível afirmar que se trata apenas da oscilação entre “estar feliz” ou “estar triste”, uma vez que a gênese da doença, apesar de ainda não ser totalmente conhecida, está relacionada ao aumento da neurotransmissão no sistema nervoso do paciente, originando esse leque de sintomas. Além disso, tendo em vista essa gama de manifestações, o paciente pode apresentar diferentes graus de severidade, desde formas mais leves até as mais graves, apresentando, inclusive sintomas psicóticos.

Dessa forma, precisamos entender o transtorno bipolar como uma condição médica, assim como hipertensão arterial, diabetes mellitus, dentre tantas outras, para, a partir daí, termos em mente que estamos lidando com um ser humano, que, como qualquer outro, apresenta razões, sentimentos e emoções. E para nós, (futuros) profissionais da saúde, não se pode esquecer que estamos tratando o doente, e não sua doença.

Infelizmente, ainda não existe uma cura para o transtorno bipolar, sendo o diagnóstico e o tratamento precoces a melhor forma de controle da doença, contribuindo também de forma significativa para a redução dos níveis de suicídio e transtorno por uso de substâncias, bem como na melhora da qualidade de vida desses pacientes.

Portanto, a partir do momento que a sociedade e, principalmente, o próprio paciente compreendem o transtorno como uma condição crônica, respeitam suas particularidades e, acima de tudo, entendem que o indivíduo não escolheu estar doente, será possível apreciar as artes e tudo o que eles têm a nos ensinar ainda em vida.

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Carolina Miôtto Castro
Revista Brado

Estudante de Medicina pela Universidade Vila Velha | Colunista da Revista Brado