A vida após a denúncia

É necessário cautela para tratar processos de violência sexual que envolvam crianças e adolescentes

Rodolfo Nascimento
Revista Brado
6 min readMay 14, 2021

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Material de divulgação da campanha “#PODESERABUSO”. Imagem: Reprodução/Fundação ABRINQ

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. — Artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

A Constituição Federal reserva em seu texto um capítulo para tratar da família, da criança, do adolescente, do jovem e do idoso. Essa proteção do legislador constituinte busca priorizar aqueles que precisam de amparo e cuidado especial. A criança e o adolescente, inclusos nessa garantia, são absoluta e relativamente incapazes, respectivamente, para praticar todos os atos da vida civil. Existem diversas limitações físicas, psicológicas, comportamentais, dentre outras, que podem ser fragilmente constrangidas, prejudicando um desenvolvimento saudável de suas personalidades.

Logo, o texto constitucional, assim como diversas leis inferiores, tenta proteger a vulnerabilidade que existe contra uma cultura repleta de violência e injustiças que podem prejudicar a vida da criança e do adolescente. Tal proteção é posta em contraposição à violência, ao abuso e à exploração, que apresentam índices assustadores e crescentes em nosso país.

Imagem: Pixabay

A agressão contra crianças e adolescentes representa a violação de nosso futuro, e as sequelas de tal crueldade impedem que a sociedade se cure e seja de fato bem-afortunada. Dentre as diversas formas de violência possíveis, a sexual se mostra um problema que fere a sociedade em sua totalidade.

“A criança representa, como é óbvio, o futuro. Não tem responsabilidade pelo passado, não sabe pôr-se, ainda, em perspectivas para o futuro”. — Ministra Cármen Lúcia (Direito de/para todos — 2008).

A violência sexual pode ser ramificada em dois aspectos: abuso sexual e exploração sexual. No abuso há uma relação desigual de poder, onde o adulto domina e anula as vontades do menor, com o intuito de transformar a criança ou o adolescente em objeto de prazer e alívio sexual. Na exploração existe uma questão pecuniária, onde a destinação sexual ocorre na presença de troca de dinheiro, valores materiais, sociais ou favores daqueles que se beneficiam de tal ato.

Campanha “Fique de olho”, realizada em Salvador (BA). Ação de conscientização contra a exploração do trabalho infantil e pelo fim da violência sexual contra crianças e adolescentes. Foto: Carol Garcia/GOVBA

Por dados consolidados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a idade em que o abuso sexual geralmente se inicia é entre os 6 e os 12 anos. De acordo com dados do Disque 100, em 2020 foram registrados mais de 95 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes. Desse número, cerca de 14 mil denúncias se referem a alguma categoria de violência sexual. O canal telefônico é um serviço gratuito para denúncias de violações de direitos humanos, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana.

Entretanto, segundo o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), em 2020 houve uma queda nos processos de violência sexual para crianças e adolescentes no estado, visto que o índice aponta que durante a quarentena houve um quadro de subnotificações de casos. Cerca de 75% dos relatos registrados são cometidos por familiares e pessoas próximas. Além disso, o fechamento das escolas dificulta as denúncias no período, visto que parte dos casos são identificados pela mudança de comportamento das vítimas perceptíveis pelos professores e diretores. Logo, a expectativa é que diversos casos de violência permaneçam desconhecidos perante o Poder Judiciário.

Em contrapartida, ao chegar ao conhecimento da justiça, os processos envolvendo a violência sexual contra crianças e adolescentes requerem uma atenção especial, visto que há uma disparidade cognitiva entre a vítima e o agressor. A complexidade que envolve a temática requer do Estado uma atuação minuciosa de modo a evitar uma situação ainda mais invasiva para a liberdade e privacidade da criança e do adolescente. Além disso, os sinais da agressão são subjetivos, podem inexistir marcas físicas e consequências particulares e variáveis de acordo com cada vítima. Logo, a prestação jurisdicional, ao investigar um caso de violência sexual, deve ser cuidadosamente respeitoso com a vítima, e utilizar técnicas específicas e recomendadas conforme a idade.

Criança sendo atendida em um ambiente forense com espaço especial para depoimento. Foto: Roberto Leal/TJMG

O tema enfrenta divergências no meio jurídico, compreensível perante a vulnerabilidade da situação. O depoimento especial, procedimento de oitiva da criança e do adolescente perante autoridade policial ou judiciária, descrito na Lei n.º 13.431/2017, estabelece ritos necessários para que a vítima tenha livre narrativa sobre a violência. A ideia é humanizar as vítimas que serão ouvidas e evitar exposições desnecessárias ou novo contato com o possível agressor. Com o depoimento especial, é possível obter provas a serem utilizadas nos processos criminais.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomenda a implementação do depoimento monitorado por equipamentos eletrônicos de vídeo, em ambiente separado da sala de audiências, visando a segurança e privacidade.

Por outro lado, exigir da vítima a responsabilidade pela produção da prova da violência sexual, através de seu depoimento, pode criar um ciclo de traumas e exposições. Segundo a procuradora de Justiça Maria Regina Fay de Azambuja, ainda que exista um depoimento especial, não há assegurados os critérios de credibilidade esperados, visto que, além de expor a criança, inicia-se nova violência ao forçá-la a reviver uma situação traumática, renovando o dano psíquico produzido pelo abuso. Para a jurista, enquanto a primeira violência foi de origem sexual, a segunda passa a ser psíquica e jurídica.

Sendo assim, há uma responsabilidade imensurável do Estado em garantir um processo legal o menos gravoso possível. Para além da denúncia, existe uma série de procedimentos necessários que devem ser observados para exista de fato uma real punição do agressor e um amparo estatal para a vítima, que não pode ser punida novamente por ato de terceiros, contrários às suas vontades.

“Não há criança culpada, não há futuro sem a criança”. — Ministra Cármen Lúcia (Direito de/para todos — 2008).

Decerto, é importante que existam campanhas de conscientização e mobilização da sociedade para incentivar as denúncias de violência sexual. É importante que as denúncias sejam realizadas e os agressores identificados e responsabilizados. Conquanto, as delegacias, os juízes, tribunais e organizações da sociedade civil devem estar preparadas para receber tais queixas, visto que é necessária uma atuação técnica e certeira, visando cumprir o papel constitucional de assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade, ao respeito, à liberdade.

Exemplo de divulgação à sociedade, a campanha “Pode Ser Abuso”, criada em 2018 pela Fundação Abrinq, tem o intuito de mobilizar as pessoas para a temática, visando alertar a sociedade para os sinais que podem indicar possíveis casos de violência sexual.

Material de divulgação da campanha “#PODESERABUSO”. Imagem: Reprodução/Fundação ABRINQ

O combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes tem sido difundido pela comunidade, e o mês do Maio Laranja possui campanhas do governo federal e de instituições. Dessa forma, a sociedade consegue identificar na vítima sinais de mudança de comportamento e é encorajada a denunciar e não se calar perante o abuso sexual. Mas a violência não se encerra com a denúncia. Os processos são complexos e muitas vezes demorados. Diversas unidades jurisdicionais não possuem salas especializadas para o depoimento especial, faltam profissionais preparados e qualificados, e os procedimentos necessários não são observados.

Para que as campanhas de mobilização sejam de fato efetivas, é fundamental impedir toda forma de negligência. Após as denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes, o cuidado deve permanecer.

Este texto possui informações do “Curso de Direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos”, coordenado por Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel.

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Este texto é parte da campanha de combate ao abuso e exploração de crianças e adolescentes desenvolvida pela Revista Brado durante o Maio Laranja.

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Rodolfo Nascimento
Revista Brado

Capixaba. Estudante de Direito. Diretor de Pesquisa da Associação Atitude Ubuntu. Editor e Colunista da Revista Brado.