Acesso à saúde como direito fundamental: o combate à Aids através do SUS

Angelo Mariño
Revista Brado
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6 min readDec 11, 2020

*Texto produzido em colaboração com Júlia Cera Scotá Moreira, estudante de Medicina.

O direito à saúde e seu posicionamento constitucional

A Constituição Federal de 1988 determina, em seu art. 6.º, que a saúde é um direito fundamental social, ao passo que o art. 196 da mesma carta confirma o entendimento de que ao Estado impõe-se o dever de zelar pela implementação de políticas públicas que garantam o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. Em sentido geral, através de uma proposta de organização sistêmica, a Constituição de 88 prevê a proteção à cura e a prevenção de doenças através de medidas que assegurem a integridade física e psíquica como desdobramento do fundamento da dignidade da pessoa humana.

É possível perceber que em diferentes momentos do texto constitucional o Legislador se preocupa em atribuir prioridade à sistematização de um sistema que nos permita universalizar o acesso à saúde, como no art. 198:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I — descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II — atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III — participação da comunidade.

Para tanto, também institucionalizou o Constituinte que o Orçamento Público, em sede de competência comum (art. 23, II, CF/88) entre União, Estados e Municípios, prestará esforços para a consecução de políticas públicas positivas voltadas à Saúde. A ideia é que, apesar de a saúde ainda ser ofertada na iniciativa privada, deve também ser abrangida por políticas públicas universais.

Assim, a partir das informações acima estabelecidas, nossa proposta no presente artigo é, sem pretensões de esgotar esse importante tema, discorrer a respeito do sistema de saúde público brasileiro e qual seu papel no tratamento do HIV/Aids.

O Sistema Único de Saúde (SUS) e o HIV/Aids

Seguindo o ínterim constitucional, em 1990 é criado o Sistema Único de Saúde (SUS), através da Lei nº. 8.080/1990, que em 2020 celebrou seus 30 anos de existência, com a marca de ser o maior (em quantidade de assistidos) sistema de saúde pública do mundo. Neste sistema são abrangidas mais de 190 milhões de pessoas, sendo que 80% dependem exclusivamente dele para qualquer tratamento de saúde, de acordo com dados do Ministério da Saúde.

Entre o rol de tratamentos oferecidos pelo SUS, temos o do HIV/Aids, um dos melhores programas do mundo voltados à doença, que, ao adotar uma política de distribuição gratuita de medicamentos, revolucionou o tratamento da epidemia e serviu como referencial internacional em seu combate. No parecer do renomado especialista Drauzio Varella, “se não tivesse adotado essa política, hoje, ao invés de 860 mil, o Brasil teria 18 milhões de brasileiros com HIV — mais ou menos a mesma prevalência da África do Sul”. No país africano, cerca de 10% da população adulta vive com o vírus.

A Aids, estágio mais avançado da infecção sexualmente transmissível (IST) pelo vírus HIV, é uma doença crônica que danifica severamente o sistema imunológico. Os primeiros casos datam da década de 1980 e, apesar dos avanços, desde então não foi possível ainda o descobrimento de cura para a infecção. No Brasil, os primeiros passos em direção à universalização do tratamento para a doença datam de 1996, mas foi só a partir de 2013 que todas as pessoas com HIV, independente da carga viral, passaram a ter reconhecido acesso ao tratamento pelo SUS. Antes, o tratamento era oferecido pela rede pública apenas quando a contagem das células de defesa (CD4) do paciente caía para abaixo do patamar de 500 células por milímetro cúbico de sangue.

Marcello Casal Jr. / Agência Brasil

Tratamento e profilaxia: cenário atual

Apesar de não haver cura, os tratamentos antirretrovirais atuais são capazes de aumentar a expectativa e qualidade de vida dos infectados. Os chamados medicamentos antirretrovirais (ARV) agem inibindo a multiplicação do HIV no organismo e, consequentemente, evitam o enfraquecimento do sistema imunológico. O desenvolvimento e a evolução dos antirretrovirais para tratar o HIV transformaram o que antes era uma infecção quase sempre fatal em uma condição crônica controlável.

Porém, tão importante quanto o tratamento em si, é a prevenção dessa patologia, principalmente entre a população jovem, que deve ser o público destinatário primário de discussões sobre sexualidade e doenças sexualmente transmissíveis. Dados do Ministério da Saúde demonstram um aumento das taxas de infecção, principalmente entre os jovens do sexo masculino (entre 20 e 24 anos): em 2005 eram 16,2 casos para cada 100.000 habitantes e em 2015 passaram a ser 33,1 casos para a mesma amostra de habitantes.

Alex Costa — Diário do Nordeste

Existem duas formas de se trabalhar a profilaxia ao vírus do HIV: (a) a que lida com a pré-exposição; e (b) a que enfrenta a pós-exposição ao vírus, sendo as duas de extrema importância para a redução das taxas de contaminação.

A prevenção pré-exposição para pessoas que vivem com risco altíssimo de contrair o vírus HIV é feita com a ingestão diária de um comprimido. Conhecido pelo nome comercial Truvada, uma combinação dos antirretrovirais tenofovir e emtricitabitina, o medicamento bloqueia a entrada do vírus HIV no DNA das células de defesa do organismo, impedindo a sua replicação. Atualmente ele é preconizado para transexuais; profissionais do sexo; homossexuais; e casais sorodiscordantes (quando uma pessoa vive com HIV e outra não); população que estatisticamente se encontra em uma situação de maior vulnerabilidade.

Já a profilaxia pós-exposição, conhecida como PEP, é uma medida de prevenção de urgência à infecção pelo HIV e outras IST’s que consiste no uso de medicamentos antirretrovirais para reduzir o risco de infecções após a exposição, ou seja, depois de ter ocorrido o possível contato com o vírus. Deve ser utilizada nas primeiras duas horas após a exposição e no máximo em até 72 horas e em qualquer situação em que exista risco de contágio, tais como violência sexual, relação sexual desprotegida e acidente ocupacional.

Apesar do grande progresso no manejo do HIV/Aids no país ao longo dos anos, ainda é uma epidemia preocupante, com números alarmantes. Segundo Gerson Pereira, diretor substituto do DIAHV (Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais), a Aids é uma epidemia concentrada, onde a prevalência dos casos é de 0,4%, mas entre populações mais vulneráveis ao HIV é maior que 1%, segundo dados apresentados no 2º Seminário de Promoção Social Saúde Preventiva.

Atualmente, no cenário nacional, cerca de 585 mil pessoas realizam a terapia antirretroviral contra o HIV em unidades da rede pública de saúde, que envolve a combinação de três categorias distintas de medicamentos, que podem combinar até 36 aplicações diferentes, o que demonstra toda a relevância da rede pública no enfrentamento à doença.

Relevância e valorização do SUS

Todos os números acima explanados nos reafirmam a imprescindibilidade e relevância da institucionalização de um sistema público de saúde proposto a universalizar o acesso à cura, tratamento e prevenção de doenças. O Brasil, com seu moderno e crescente sistema, se posiciona, a nível internacional, como referência no modelo.

No que se refere ao tratamento do HIV/Aids, a possibilidade de apresentar soluções simplificadas e acessíveis aos assistidos nos permitiu reduzir consideravelmente os números da doença, inclusive em sua taxa de mortalidade, ademais, é claro, do contágio, ainda que seus números sejam, todavia, expressivos.

Há muito o que se trabalhar, entretanto, o Sistema dá sinais de resistência. Em meio ao contexto social, econômico e sanitário de 2020, marcado pela eclosão da repentina pandemia do Sars-Cov-2, que propôs ao SUS desafios sem precedentes, que concorreram atenção com o combate ao HIV/Aids, câncer, entre outros, o Sistema deu provas de seu vigor.

Que neste dezembro, onde celebramos o combate e prevenção mundial à Aids, seja ressaltada a atenção à doença, que por silenciosa passa despercebida, mas ainda ceifa centenas de vidas anualmente. Ao mesmo tempo, devemos valorizar e prestar louros ao nosso Sistema Único de Saúde, por seu incansável trabalho em prol da saúde do povo brasileiro. Indubitavelmente, o SUS, seus resultados e conquistas nos permitem a aproximação aos sonhos e pretensões que o artigo 3.º de nossa Carta Magna elenca:

I — construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II — garantir o desenvolvimento nacional;

III — erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

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Angelo Mariño
Revista Brado

Graduando em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Fundador da AsM Editora. Revista Brado.