Acesso universal à saúde sexual e reprodutiva para mulheres negras

O racismo como elemento estruturante das desigualdades de gênero e violações dos direitos sexuais e reprodutivos

Thays Moreira
Revista Brado
4 min readSep 24, 2021

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Foto: Reprodução de cena do documentário “Libertem Angela Davis”

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil, campanha de apelo global das Nações Unidas, têm como objetivo a erradicação da pobreza e a proteção do meio ambiente e condições climáticas. A importância de sua agenda é notável. Ainda assim, os 17 ODS’s não abarcam uma especificidade racial explícita.

Trabalhar para a melhoria do Brasil é admitir nosso passado colonialista e escravista, tendo como condição — intrínseca — o genocídio e a marginalização do povo negro e indígena para seu funcionamento. Partindo dessa premissa, o objetivo número cinco Igualdade de Gênero, em seu subtópico 5.6, visa assegurar o acesso universal à saúde sexual e os direitos reprodutivos a partir do que foi acordado no Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim.

Reprodução/ONU Brasil

Direitos Reprodutivos são, em linhas gerais, direitos humanos básicos. Em suas novas significações, seu objetivo maior é minimizar as violações contra a autonomia individual, a integridade física e mental de indivíduos e grupos sociais vulneráveis garantindo bem-estar sexual e reprodutivo. Alguns desses direitos são:

- Direito de decidir sobre a reprodução sem sofrer discriminação, coerção, violência ou restrição ao número de filhos e intervalo entre seus nascimentos;

- Direito de ter acesso à informação e aos meios para o exercício saudável e seguro da reprodução e sexualidade;

- Direito a ter controle sobre seu próprio corpo;

- Direito de exercer sua sexualidade sem sofrer discriminações ou violência.

Nesse sentido, vale destacar a obra da filósofa, professora e ativista Angela Y. Davis “Mulheres, Raça e Classe” (1981), que traz nuances das diversas formas de opressão e desumanização da mulher negra na escravidão, na luta pelos direitos civis das mulheres, nos primeiros movimentos feministas e na construção socioeconômica dos Estados Unidos antes e após a Guerra Civil. O capítulo “Racismo, Controle de Natalidade e Direitos Reprodutivos”, traz a perspectiva do controle reprodutivo cartografando a marginalização de mulheres negras e porto-riquenhas nas lutas pelo aborto e por métodos contraceptivos desde finais do século XIX até a década de 1980.

Em contraponto, a experiência do Brasil no que diz respeito à esterilização e a discursos que fomentavam o controle da reprodução das mulheres negras levou a denúncias contra o racismo presentes na saúde pública e na política institucional. Para além da questão específica, que é o controle reprodutivo, é preciso mapear estruturas pelas quais se fundamentaram a sociedade brasileira pós-colonial: o pensamento eugenista, o arcabouço patriarcal e o racismo.

Esses pensamentos estiveram muito presentes na construção social do Brasil, em fins do século XIX e começo do XX, em que se acreditava no embranquecimento gradativo da população através de relações étnico-sexuais, onde o homem branco escolheria sempre se relacionar e se reproduzir com pessoas correspondentes ao seu tipo físico.

É possível identificar, além da ideia de eugenia, a prevalência do mito da harmonia racial, ou democracia racial, que naturalizava a ideia de que “os negros são discriminados porque são pobres e não porque são negros”.

Portanto, eugenia e democracia racial, defendidas por parte da intelectualidade brasileira no pós-abolição e presentes até hoje no senso comum brasileiro, foram os eixos que articularam a constituição dos direitos reprodutivos da mulher negra no Brasil. Esse é o contexto que precede a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), mais conhecida como Conferência do Cairo de 1994. O documento final estabelece metas a serem cumpridas pelas nações presentes, vinculadas aos direitos humanos, e dedica parte de seus desígnios ao direito reprodutivo, reconhecendo, contudo, que as mulheres não devem ser consideradas apenas objeto desse direito, mas também seu sujeito, participando ativamente de sua formulação.

Visto que, o problema do racismo é estruturante nas sociedades ocidentais, é de competência das Nações Unidas combater veementemente e explicitamente esse marcador. A estratégia é partir do ponto de que a luta por direitos sexuais e reprodutivos é, no entanto, uma luta antirracista e anti-burguesa. A falta de autonomia individual sobre o corpo e as condições precárias de educação sexual estão imbricadas em marcadores sociais muito específicos. Convenhamos que, sim, o combate à pobreza, à desigualdade de gênero e social e à fome é, nas entrelinhas, um combate, necessariamente, ao racismo. Nomear nossas opressões e encará-las como fatores cruciais para nossa degeneração é uma obrigação de qualquer campanha que se comprometa com a vida humana em sua totalidade e plenitude.

Pelo fim da pobreza sexual, reprodutiva e intelectual!

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Thays Moreira
Revista Brado

Mulher negra, historiadora, especializada em Psicopedagogia Clínica e Institucional. Raça, Gênero, Direitos Reprodutivos e Sexualidade. Bem Vindes!