Apesar do tempo ruim, o inverno sempre passa

Os gritos de alguns não derrubarão nossos mais fortes alicerces

Angelo Mariño
Revista Brado
4 min readAug 17, 2020

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Nos últimos dias, um caso ocorrido em São Mateus, no Espírito Santo, tem gerado debate. Após 4 anos sofrendo violência sexual, uma menor vulnerável teve autorizado procedimento de aborto legal, garantido no Código Penal Brasileiro, em seu art. 128. De acordo com esse dispositivo, e com o complemento da ADPF 54, a mulher tem direito ao aborto se a gravidez é decorrente de estupro; se a gravidez representa risco de vida à mulher; e se for caso de anencefalia fetal. Ainda, é assegurado à mulher, sem necessidade de nada ademais de sua própria palavra, o direito ao atendimento gratuito no SUS, que inclui o recebimento de tratamento contra DSTs, a pílula do dia seguinte, apoio psicológico e ao aborto legal. Um condicionante para esse último é que a idade gestacional deve ser de, no máximo, 22 semanas, e o feto pesar até 500 gramas. E é sob esse último item, além dos de ordem moral ou religiosa, que alguns têm se debruçado para pleitear (sem razão) contra o aborto, já autorizado à sobrevivente pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo.

Primeiramente, por tratar-se de estupro de vulnerável, o caso deveria correr em absoluto sigilo, pela preservação da vítima. Desafortunadamente, após vazar à imprensa, a criança e sua família não tiveram apenas a privacidade violada, mas foram jogadas aos lobos perante ativistas, que foram ao Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros (Cisam), em Recife, protestar, expondo a sobrevivente e sua família e deferindo ofensas aos profissionais de saúde à cargo do procedimento. Ao fornecer os dados da vítima e incitar pessoas a irem ao local, os responsáveis pela ação desrespeitam dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (art.17), da Constituição Federal (art. 227) e Código Penal (art. 286) e responderão por todas as consequências cabíveis.

Cenas surreais em frente ao Cisam, em Recife. Reprodução / Internet.

A gravidez da menina, ainda que já tenha atingido as 22 semanas, não só é resultado de estupro, mas é de risco para a vida da gestante, o que configura duas previsões legais para o aborto ser realizado. Ao conceder autorização para o procedimento, protege-se a vulnerável perante o trauma; manter a gravidez representaria uma dupla transgressão: primeiro, por parte do abusador; segundo, pelo Estado, em não garantir à vítima o aborto legal, submetendo a criança a uma gravidez que conta com riscos obstétricos graves, pondo a vida, saúde e salutar desenvolvimento dela em jogo.

A construção do ordenamento jurídico brasileiro é costurada por padrões morais e éticos, construídos durante anos e resultado de nossas experiências enquanto sociedade civil e comunidade política. Traduz-se em nossos dispositivos legais as convicções que temos enquanto povo, e mesmo com o dissenso em alguns pontos, os pilares que sustém nosso sistema são baseados em uma cultura de respeito aos direitos humanos, à dignidade humana, à civilidade, à proteção do vulnerável, à justiça e à convivência harmoniosa entre indivíduos. Quaisquer atos que atentem contra esses valores, atentam também contra o sistema como um todo. No caso em tela, é importante que, apesar da colisão entre princípios, seriamente se pondere os efeitos físicos e psicossociais para a vítima.

Ativistas, ao arguirem em prol de suas crenças, esqueceram-se redondamente da figura humana vulnerável, sobrevivente a 4 anos de violência sexual, a qual age de acordo com o que lhe é garantido há décadas por lei. Não só desrespeitam a sagrada privacidade de terceiros, mas pleiteiam erroneamente suas convicções em um caso totalmente desconexo com sua demanda. A proteção à vulnerável por parte do Estado não representa o estímulo ou incitação ao aborto voluntário; o Estado, ao prescrever em seus dispositivos normas de tal natureza, entende seu papel em dirimir o dano sofrido pela vítima, oferecendo todas as condições possíveis para que o trauma não se prolongue no tempo. Essa foi a motivação do legislador e segue sendo o norte de orientação dos operadores do Direito e da Saúde. Os gritos de alguns não derrubarão nossos mais fortes alicerces. Os responsáveis pela exposição dos dados da menina responderão pelos crimes cometidos. Enquanto isso, o agressor segue foragido.

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Angelo Mariño
Revista Brado

Graduando em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Fundador da AsM Editora. Revista Brado.