As mulheres afegãs não serão apagadas

Isadora Elias
Revista Brado
Published in
10 min readAug 26, 2021
Retrato das Eleições parlamentares — outubro de 2018 — em Herat, no Afeganistão. FOTO: UNAMA

“De repente, a maior parte de nossas liberdades foi retirada de nós”, disse Nooria Haya, parteira afegã com nome fictício. “É tão difícil. Mas não temos escolha. Eles são brutais. Temos que fazer o que eles dizem. Eles estão usando o Islã para seus próprios fins. Todos somos muçulmanos, mas suas crenças são diferentes”.

E esse é o relato de apenas uma entre as milhões de mulheres e meninas afegãs que, em menos de uma semana, viram seus direitos e liberdades, conquistados em quase duas décadas, se transformarem novamente em medo e opressão.

Ao longo da história do Afeganistão, os direitos das mulheres sempre estiveram presentes na pauta política. Até o século XIX, as afegãs eram fortemente reprimidas e isso era visto como algo aceitável no país. Entretanto, no início do século XX, o Rei Amanullah propôs medidas a fim de mudar essa realidade opressiva e conservadora em seu reino.

Com o intuito de modernizar o país, o governante promoveu a liberdade das mulheres em âmbito público, com medidas como o fim do casamento forçado, do dote, do casamento infantil, além de reforçar a importância da educação para o sexo feminino, promover a emancipação feminina, estimular o uso de vestimentas mais ‘ocidentais’ e restringir a prática da poligamia — algo muito comum entre os afegãos da época.

Ilustração da Rainha Soraya na capa da revista TIME. (Ilustração de Ivan Loginov para TIME; Rykoff Collection)

Notoriamente, medidas tão inovadoras como essas não poderiam ter sido fruto das ideias apenas de uma pessoa do sexo masculino, uma vez que, por não vivenciarem a opressão na pele, muitas vezes não têm noção da dor que ela traz. Essas mudanças se devem à relevante influência da Rainha Soraya, esposa de Amanullah, também conhecida por ser uma das primeiras e mais importantes ativistas afegãs. Juntamente com seu marido, Soraya lutou — encabeçando protestos, inclusive — para promover essas reformas, o que acabou contribuindo para a queda de seu reinado antes que essas mudanças fossem postas completamente em prática. Após uma profunda crise política, Amanullah se viu forçado a passar o trono ao seu irmão, que não deu seguimento às suas políticas progressistas.

Ao longo do século, o Afeganistão seguiu sendo administrado por governos discriminatórios e patriarcais, até que em 1973, num golpe de Estado, o então primeiro-ministro Mohammed Daoud Khan instituiu a República Afegã e pôs em prática as mudanças propostas no passado, fazendo com que em seu governo muitas mulheres ganhassem liberdade para estudar e trabalhar e virassem cientistas, professoras, funcionárias públicas, entre várias outras profissões. Daoud Khan era considerado um líder progressista e modernizante e, no auge da Guerra Fria, chefiava um governo bilateral que contava com o apoio tanto dos Estados Unidos quanto da União Soviética.

Grupo de guerrilheiros afegãos nas montanhas do país. Foto: Getty Images

Em 1978, Daoud Khan foi derrubado do poder por uma insurreição do Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA), de inspiração marxista, dando início à República Democrática do Afeganistão, um regime socialista que vigorou até 1992. Nesse período, apesar de toda a ebulição política e social na qual o país foi afundado, os direitos das mulheres seguiram avançando. Logo em seus primeiros meses no governo, o PDPA aboliu o dote, iniciou programas de incentivo à alfabetização e à integração feminina ao trabalho e igualou homens e mulheres perante a lei. Contudo, disputas políticas internas ao partido, tensões com países vizinhos, o crescente afastamento dos Estados Unidos e conflitos locais com facções armadas levaram o governo do PDPA a se deteriorar aceleradamente, até que em 1979 o país foi invadido pela União Soviética, que sustentava o governo até então.

A invasão soviética deu início à Guerra do Afeganistão, que durou até 1992, quando os russos foram derrotados. Essa derrota, contudo, se deu graças ao financiamento norte-americano de milícias anticomunistas mujahedins — em árabe, “combatentes”, adeptos à “guerra santa”.

O Talibã é o grupo extremista que mais se destaca entre os mujahedins que combateram a URSS. Seu nome significa “estudantes”, em referência aos jovens estudantes radicalizados que integravam o grupo inicialmente. Financiado pelos EUA para retirar os comunistas do poder, o grupo estava longe de ser adepto ao capitalismo ocidental. Ao contrário disso, seguiam uma visão distorcida e ultraconservadora do Islamismo, e vislumbravam uma sociedade mais discriminatória e fechada que aquela que vigorava antes do golpe republicano de Daoud Khan. Foi assim que, derrotada a URSS em 1992, o grupo continuou sua “jihad” — “guerra da fé” –, até 1996, quando tomou a capital Cabul e se instalou no poder.

“A realidade se tornou tão insuportável, ela respondeu, tão árida, que tudo que consigo pintar agora são as cores dos meus sonhos”. (Trecho do livro “Lendo Lolita em Teerã”, de Azar Nafisi).

Desde o início de seu governo, o Talibã instaurou uma política “jihadista”, de luta contra todos que consideravam “infiéis”. Entre suas ações mais conhecidas, é possível citar ataques terroristas, mutilações, apedrejamentos públicos, entre diversos outros ataques aos direitos humanos.

A ativista paquistanesa Malala Yousafzai foi alvo do Talibã em 2015, quando, aos 14 anos de idade, foi baleada na saída de sua escola, por incentivar publicamente a educação para meninas. Foto: Mark Garten/UN

E é justamente nesse ponto que entram as mulheres. Os membros do Talibã perseguem mulheres, as impedem de estudar, trabalhar, saírem de casa desacompanhadas, usarem roupas de suas escolhas, e as obrigam a usar burca — a vestimenta islâmica que cobre todo o corpo e o rosto das mulheres, incluindo os olhos — e a sair sempre acompanhadas de um homem de sua família, entre outras formas de opressão. Entre 1996 e 2001, isso foi política de Estado no Afeganistão.

“Nossa vida era governada por uma absurda ficcionalidade. Tentamos viver em espaços criados nas frestas entre aquela sala, que tornara nosso casulo protetor, e o mundo do censor, de bruxas e de demônios que ficavam do lado de fora. Qual desses dois mundos era mais real, e a qual pertencíamos?”. (Trecho do livro “Lendo Lolita em Teerã”, de Azar Nafisi).

Entretanto, alega-se que o ato de privar as mulheres de serem livres é baseado no preceito religioso de proteção ao sexo feminino.Ocorre que isso, na realidade, não passa de uma desculpa esfarrapada para os extremistas tentarem colocar algo plausível no lugar de admitirem que sua estrutura política nega os avanços sociais e se fundamenta em convenções conservadoras e misóginas.

Se os jihadistas tivessem real interesse em proteger as afegãs, não haveria relatos de apedrejamento de mulheres, violência doméstica, violência sexual contra adultas e crianças, casamento forçado, privação da liberdade, entre diversas outras formas abjetas de violência.

Eles, na verdade, querem resumir mulheres a objetos reprodutores, cujo objetivo é procriar — preferencialmente filhos do gênero masculino —, e reduzi-las à esfera doméstica, enquanto os maridos vivem suas vidas do lado de fora de suas casas, dominando os setores econômicos, sociais, culturais e políticos.

No Afeganistão do Talibã, as mulheres são impedidas de viver — literalmente. Nos centros médicos, não existia atendimento ou medicações para mulheres nos anos em que os jihadistas estavam no poder. A não ser que, por sorte, houvesse alguma médica ou curandeira no local, as doentes não podiam ser atendidas pelos mesmos médicos que os homens. E não para por aí: o preceito do Talibã que diz ter subido ao poder para garantir a segurança na região não abrange o sexo feminino, uma vez que lá a violência contra a mulher é plenamente aceita e promovida pelos que agora ocupam novamente o governo.

Mulheres afegãs indo à escola e sem burca na década de 1970. Foto: Bill Podlich

Um exemplo claro sobre o sistema político misógino proposto pelo Talibã é impor a obrigatoriedade do uso da burca. Sabe-se que evidentemente o uso desse traje está presente no Alcorão, mas o desejo de usá-lo deveria partir de cada mulher — como foi nos tempos de um Afeganistão mais “progressista” — , e não de uma obrigação de um Estado chefiado por homens. A relação da pessoa com a religião deve ser individual; um grupo não tem o direito de se colocar como superior e impor atos ou crenças.

As mulheres praticantes têm amplo conhecimento do Alcorão e de seus dogmas. Portanto, por que a interpretação masculina de um trecho direcionado ao outro sexo se coloca de forma tão hierarquicamente superior ao ponto de haver uma sobreposição de valores patriarcais e de obrigatoriedade?

Pode-se abordar o posicionamento de Natalia Darwich, uma muçulmana xiita praticante, que diz: “O véu é algo entre Deus e mim”, notoriamente questionando a influência de terceiros em sua escolha.

Após o atentado do 11 de setembro, os Estados Unidos da América invadem o Afeganistão. Foto: Seth McCallister/AFP

Entretanto, após cinco anos de opressão, a liberdade voltou ao horizonte das afegãs. Em 2001, quando o Talibã foi acusado de acobertar os terroristas do grupo Al-Qaeda após o atentado às Torres Gêmeas, os Estados Unidos invadiram o país e tomaram o poder dos rebeldes. A partir desse momento, um governo democrático — escolhido por meio de eleições — , onde a importância dos direitos humanos se fez presente, foi finalmente instaurado no Afeganistão.

Como consequência dessa democratização, os direitos femininos começaram a ser postos em prática, e assim todas aquelas opressões deixaram de ser socialmente aceitas e medidas ainda mais profundas — como a possibilidade das mulheres dirigirem e assumirem cargos governamentais — foram adotadas.

Contudo, ainda durante o governo de Donald Trump, os EUA iniciaram um projeto de retirada das tropas norte-americanas do país — uma das poucas políticas republicanas que o democrata Joe Biden seguiu. Em agosto de 2021, a última base norte-americana deixou o Afeganistão, e com isso o Talibã — que já vinha avançando desde o início da retirada — dominou Cabul e se autointitulou governante do país. Essa nova governança significa 20 anos de retrocesso para os direitos das mulheres. A opressão já voltou.

Homem cobre de tinta fachada de salão de beleza na cidade de Cabul. Foto: Reprodução/Twitter/Lotfullah Najafizada

Foram capturadas imagens absurdas de homens pintando as fachadas de salões de beleza para literalmente tentarem “apagar” as mulheres ali retratadas. É a mais simples representação do intuito do grupo extremista: apagá-las da vida pública e da sociedade. A expulsão das mulheres de seus trabalhos, estudos, vidas sociais e das próprias ruas já voltou a acontecer.

Cabe apresentar o relato chocante de uma universitária afegã ao The Guardian, que mostrou que essa expulsão chegou até antes de ordens diretas do Talibã. Ela conta que no domingo, 15 de agosto, estava indo para a faculdade e se deparou com outras universitárias temendo por suas vidas uma vez que a polícia estava alertando que o Talibã havia tomado Cabul e iria espancar mulheres que estivessem sem burca — a vestimenta que mantém todo o corpo coberto, e não só a cabeça — , algo que muitas estudantes não possuíam em seus dormitórios ou casas. Muitas delas já haviam guardado suas coisas e se despedido de professores, pois sabiam que a probabilidade de voltarem para o estudo era quase nula. Entretanto, nesse processo de evacuação do local muitas mulheres foram impedidas de utilizarem o transporte público, pois os motoristas estavam com medo de levá-las e ficarem marcados pelo grupo extremista. Além disso, diversos homens que estavam vendo todo o desespero fizeram comentários ameaçadores e irônicos, como: “são seus últimos dias nas ruas” e “eu vou casar com quatro de vocês em um dia”.

A afegã conta que ao chegar em casa se sentiu na obrigação de esconder tudo que se relacionava ao estudo, como certificados e diplomas, para que futuramente não fosse prejudicada pelo Talibã, por ter simplesmente tido algum nível de educação e não ser o padrão de mulher ignorante e submissa que agrada os terroristas.

“Uma sociedade não tem qualquer chance de sucesso se as suas mulheres não forem instruídas, Laila. Nenhuma chance”. (Trecho do livro “A Cidade do Sol”, de Khaled Hosseini).

Essas mulheres já sentiram o gosto da liberdade. Elas já sabem o que é se sentir independente, livre, capaz, e não vai ser um governo opressor e tirânico que vai roubar isso delas. A ignorância é uma grande arma para a manipulação, mas as afegãs tiveram 20 anos de informação, de abertura para o mundo, e não há nada nem ninguém que vai conseguir calá-las e reprimir todas as suas vivências e aprendizados. Não é à toa que 80% das milhares de pessoas que fugiram do Afeganistão com a ascensão do Talibã eram mulheres, segundo dados da ONU. As mulheres não estão mais dispostas a aceitar e se submeter a tamanho autoritarismo sem reagir. Não importa se vão fugir do país ou colocar suas vidas em risco indo às ruas: as afegãs não irão se calar.

É de absoluta importância que as grandes potências mundiais e organizações que lutam pelos direitos das mulheres se posicionem mediante fatos como esses. Foram milhares de anos para o avanço dos direitos femininos ao redor do mundo para um grupo conseguir apagá-los com um estalar de dedos — ou um crepitar de metralhadoras. A pressão exterior, contrária ao Talibã e a outros países que reconhecem ou tendem a reconhecer seu governo — como a China e a Rússia — deve ser tamanha para que os direitos das mulheres no Afeganistão, e no resto da Terra, não sejam tão facilmente — e quiçá completamente — apagados.

O Talibã ou quem quer que seja não conseguirá apagar as mulheres, muito menos as vozes do Afeganistão. A opressão afegã não se dá por preceitos religiosos, mas pelo preconceito e pela dominação sexual e étnica. E, por esse e por muitos outros motivos, deve ser duramente combatida e enfrentada.

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