Augusto Aras, o novo “procureur du roi” ?

A importância de constitucionalizar a lista tríplice como critério de nomeação do procurador-geral da República

Rodolfo Nascimento
Revista Brado
7 min readJun 29, 2020

--

Antônio Augusto Brandão de Aras, atual procurador-geral da República. Foto: Evaristo SA/Veja.

O Ministério Público é uma instituição de extrema importância em nosso ordenamento. Responsável pela defesa da ordem jurídica, possui diversas funções institucionais com desígnio de proteger o regime democrático.

Historicamente, boa parte dos doutrinadores considera a França como o berço do Ministério Público. As primeiras noções da instituição surgiam na figura dos procuradores do Rei, responsáveis por resguardar seus interesses.

Filipe IV, o Belo. Rei francês. Foto: Domínio Público.

O Rei Filipe IV, o Belo, formalizou esse cargo com a publicação das Ordenanças de 25 de março de 1302. Existiam os avocats du roi e os procureurs du roi, com atribuições cíveis e criminais, respectivamente. Vale ressaltar que, nesse período, o absolutismo predominava por toda a Europa, onde o poder dos reis era absoluto, totalmente centralizado e autoritário. As vontades do Soberano representavam as vontades do próprio Estado.

Essa instituição é fortalecida ao longo dos anos, ratificando as funções de relevância estatal. Cada vez mais, o órgão de representantes se distancia das interferências Reais. Na França, diversas mudanças sociais e no pensamento político se tornam marco da evolução absolutista a um período republicano. A exigência de limitação do poder estatal trouxe recomendações à nova Assembleia Nacional Constituinte de 1789 — entre eles, a retirada da natureza política do Ministério Público.

Abertura dos Estados Gerais em 5 de Maio de 1789. Foto: Isidore-Stanislaus Helman e Charles Monnet/Domínio Público.

Em 1791, com a finalização da Constituição, a nova Monarquia Parlamentar Francesa, inspirada nos ideais iluministas, trouxe resoluções da separação da Igreja e do Estado e a divisão do poder estatal. Esse movimento trouxe reflexos no Ministério Público, que se consolida como órgão defensor do bem público. Essas mudanças guiadas pela Revolução Francesa se estenderam por todo o mundo. O legado dos ideais de liberdade individual, a popularização da república como forma de governo e os princípios iluministas também chegaram ao Brasil.

Embora a figura de procurador já existisse desde o período colonial brasileiro, com o cargo de feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, existia uma vinculação ao Poder Executivo que se estendeu até a promulgação da Constituição Federal de 1988. Desde então, o Ministério Público já consolidado ganha autonomia e independência, atribuído a categoria de função de atividade essencial à Justiça.

A autonomia funcional e administrativa concedida ao Ministério Público estabelece o órgão como um poder estatal especial, desvinculado dos demais poderes tradicionais (Executivo, Legislativo e Judiciário). Dessa forma, existe independência para que a instituição possa realizar suas atribuições sem intimidações ou coerção externa. Seus membros podem atuar livremente de acordo com suas convicções e interpretações jurídicas.

Atualmente, a estrutura organizatória se baseia na divisão federativa, entre o Ministério Público da União e o Ministério Público dos Estados. Quando tratamos da esfera federal, a representação e chefia é de responsabilidade do procurador-geral da República.

Sede da Procuradoria-Geral da República — Brasília/DF. Foto:Ricardo Camargo/Youtube.

Esse cargo é de nomeação do presidente da República, entre os membros do Ministério Público ingressados na carreira mediante bacharelado em Direito, aprovação no concurso público, dentre outros requisitos.

Qualquer membro da instituição que preencha os requisitos pode ser indicado para ocupar o cargo, com posterior aprovação do Senado Federal. E nesse ponto a autonomia do órgão se perde. Dentre as atribuições do cargo, confere ao procurador-geral oferecer denúncia contra o presidente da República e propor ações de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal. Um possível alinhamento político entre o presidente da República e o procurador-geral da República impede a atuação livre daquele que chefia o Ministério Público. Nessa relação, não há como garantir que não ocorra coerção ou favorecimento, com a finalidade de evitar denúncias ou contestação sobre atos ilegais. O chefe do Ministério Público deve atuar como fiscal da lei, garantindo, independentemente de qualquer situação, a ordem jurídica.

Augusto Aras, em sessão no Supremo Tribunal Federal. Foto: Nelson Jr/SCO STF.

O atual chefe do Ministério Público Federal, Augusto Aras, vem sofrendo diversas críticas por um visível alinhamento com o presidente da República. O procurador-geral tem se demonstrado inerte sobre o questionamento de possíveis crimes cometidos pelo chefe do Executivo, sem demonstrar nenhum parecer técnico ou jurídico para rebater os acontecimentos — ao mesmo tempo, já foi citado como candidato a eventual vaga no STF. Ao ser questionado sobre os ataques ao Supremo proferidos durante a reunião ministerial, Aras respondeu, em entrevista: “Não devo me manifestar e não vou adentrar ao conteúdo”, sem demonstrar nenhuma convicção jurídica sobre o tema.

Uma das formas de se garantir a transparência e preservar a independência do Ministério Público é através da lista tríplice, apresentada pela Associação Nacional dos Procuradores da República. Nela, a escolha do cargo é limitada aos nomes indicados dentro da própria instituição. Essa lista era seguida desde 2003, quando se tornou tradição que todos os procuradores-gerais fossem os primeiros colocados da lista, até 2017, quando Raquel Dodge foi escolhida estando na segunda colocação, mas, de qualquer forma, ainda dentro da lista tríplice. Augusto Aras, indicado em 2019, não estava entre os sugeridos pela associação, que se mostrou contrária a quebra da tradição:

“O indicado não foi submetido a debates públicos, não apresentou propostas à vista da sociedade e da própria carreira. Não se sabe o que conversou em diálogos absolutamente reservados, desenvolvidos à margem da opinião pública. Não possui, ademais, qualquer liderança para comandar uma instituição com o peso e a importância do MPF. Sua indicação é, conforme expresso pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, uma escolha pessoal, decorrente de posição de afinidade de pensamento.

O próprio presidente representou o cargo de PGR como uma dama no tabuleiro de xadrez, sendo o presidente, o rei. Em outras ocasiões, expressou que o chefe do MPF tinha de ser alguém alinhado a ele.”

Rei, peça do xadrez ocidental cuja captura é o único objetivo do jogo. Foto: Rapeepong Puttakumwong/Getty Images.

Sendo assim, o sistema de lista preservaria a autonomia da instituição. O papel de “rei” foi superado e cada ato deve ser pautado em responsabilidade e adequação. Uma subordinação do Ministério Público ao Executivo nos remete àquele papel de procureurs du roi nos períodos de absolutismo, onde os interesses estatais e pessoais de quem ocupava o trono se confundiam. Esses procuradores, nomeados pelos critérios do rei, representavam os interesses do monarca.

O procurador-geral não deve atuar como procurador do presidente, em favor dos seus interesses políticos ou pessoais. Não deve ficar inerte aos acontecimentos.

Os membros do próprio órgão devem deliberar quem melhor os representa. A lista tríplice é um processo que garante maior independência ao procurador-geral. Esse cargo, que interfere diretamente nas ações do poder Executivo, deve atuar livremente sob suas convicções jurídicas. Um manifesto, assinado por 655 dos 1150 procuradores membros do Ministério Público, solicitava a Constitucionalização da lista tríplice.

De qualquer forma, o chefe da administração pública não é desamparado de assessoramento jurídico. A Constituição prevê à Advocacia-Geral da União a representação judicial e extrajudicial do Poder Executivo. O chefe da instituição é o advogado-geral da União (atualmente exercido por José Levi), escolhido livremente pelo presidente da República, sem posterior aprovação do Senado Federal. Além disso, não é necessário que o nomeado integre o quadro de funcionários da Advocacia-Geral da União. De qualquer forma, esse integrante não cumpre o papel de advogado do presidente, visto que a representação judicial da União não é exclusiva ou vinculada ao Executivo, abrangendo os demais poderes e instituições que exerçam funções essenciais à Justiça.

A expectativa para ambas instituições consiste em preservar o Estado democrático de direito e garantir o bom funcionamento da administração pública e do sistema judiciário. A tentativa de utilizar tais prerrogativas em benefício próprio quebra a ordem constitucional e enfraquece todo o sistema.

Historicamente, a figura do monarca demonstrou diversas vezes que a concentração de poder é prejudicial para o desenvolvimento da sociedade. Nas mais diversas revoluções sociais, como a Revolução Francesa, o entendimento de poder absoluto é questionado. Procuradores dos reis não são mais aceitos. A sociedade necessita de agentes públicos focados em garantir e fiscalizar a lei. O Ministério Público possui papel essencial no ordenamento jurídico brasileiro, e sua autonomia e funcionalidade devem ser preservadas. Esse órgão possui prerrogativa para defender o regime democrático e garantir os interesses sociais e individuais, sem interferência ou subordinação de outros poderes.

As instituições públicas devem ser preservadas, protegidas e respeitadas.

Esse texto possui informações do “Manual de Direito Constitucional”, de Nathalia Masson, e do “Manual de Direito Constitucional”, de Marcelo Novelino.

--

--

Rodolfo Nascimento
Revista Brado

Capixaba. Estudante de Direito. Diretor de Pesquisa da Associação Atitude Ubuntu. Editor e Colunista da Revista Brado.