Bolívia, um ano após Evo Morales

João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado
Published in
9 min readJan 21, 2021
Protesto contra Evo Morales após sua vitória nas eleições de 2019. Foto: Marco Bello/Reuters

No dia 10 de novembro de 2019, o presidente recém-reeleito da Bolívia, Juan Evo Morales Ayma, renúncia ao seu cargo após 21 dias de intensos protestos devido às eleições do dia 20 de outubro, duramente acusadas de terem sido fraudadas pelo presidente após sua vitória em primeiro turno. Durante esses dias tensos, a Bolívia entrou em um estado de implosão em que a política nacional, antes relativamente estável, deu lugar à violência e à incerteza. Quase um ano depois, novas eleições foram realizadas e o governo formado tomou posse no último dia 8 de novembro.

Neste texto, não buscamos, de maneira alguma, explicar com exatidão os acontecimentos que levaram à crise de novembro de 2019 na Bolívia, ou tudo o que aconteceu no país depois disso. Buscamos apenas resgatar alguns dos eventos mais importantes e relevantes que marcaram os momentos em questão, tentando apresentá-los de forma mais sucinta para o público brasileiro, que é usualmente desconectado dessas questões por três razões: primeiro porque política externa e diplomacia raramente caem no gosto popular ou dificilmente se tornam temas amplamente discutidos ou conhecidos; segundo que a barreira linguística entre Brasil e Bolívia torna os efeitos da crise no país vizinho muito menos perceptíveis do que no restante da América Latina, tornando-se mais difícil acompanhar e ter plena noção sobre o que aconteceu, terceiro que o brasileiros dividem-se em reconhecer-se como latino-americanos ou ocidentais, o que torna mais interessante para boa parcela da população acompanhar eleições nos Estados Unidos, Israel ou nos países europeus do que acompanhar as eleições de nossos vizinhos, exceto é claro quando as votações em questão refletem disputas política de nosso país.

Assim sendo, vamos compreender um pouco sobre o que acontecia nesse país antes da crise, para que possamos ter uma imagem maior sobre os eventos, o que significa em boa parte analisar a trajetória de Juan Evo Morales Ayma, ou simplesmente Evo Morales, do partido conhecido como Movimento ao Socialismo (MAS). A começar, Morales foi reeleito no pleito de 20 de outubro de 2019 com cerca de 47% dos votos totais, abrindo caminho para seu quarto mandato na presidência do país, o que significa que ele já estava no comando desde janeiro de 2006 e desejava atingir o ano de 2023 neste posto. Bastante tempo, não é verdade? Acontece que a lei boliviana, assim como a do Brasil, não permite que uma mesma pessoa concorra a eleições após uma reeleição consecutiva, o que no caso de Morales significa que ele não poderia ser candidato a presidente no último ano. Isso parece ser algo bem simples e direto de se compreender, mas na realidade foi fonte de controvérsia.

Vamos voltar por um momento para 2006, quando Morales assumiu pela primeira vez a presidência. Na ocasião, a legislação da Bolívia se encontrava sob a Constituição de 1967, que foi substituída por uma nova em 2009. Nesse mesmo ano, novas eleições presidenciais reelegeram Morales para presidente até 2014, que seria o limite legal de seu governo.

No entanto, Morales logo passou a argumentar que, por conta da mudança de constituição em 2009, ele poderia se reeleger mais uma vez, pois até aquele momento ele havia sido eleito somente uma vez sob as novas leis bolivianas, o que o dava a chance de buscar um terceiro mandato. Por mais controverso que esse argumento possa parecer, afinal o próprio Morales defendeu a limitações para reeleições contínuas para a constituição de 2009, as Cortes bolivianas admitiram sua candidatura para 2014, que novamente foram ganhas por Morales.

O mesmo se comprometeu depois disso em não buscar um quarto mandato após as eleições de 2014, mas logo passou a explorar mecanismos legais para tornar isso possível. Em 2016, um referendo foi feito para a população buscando legalizar um terceiro mandato presidencial consecutivo, mas acabou sendo rejeitado pela votação, o que foi posteriormente descreditado por Morales.

Mesmo com a rejeição, Evo continuou correndo atrás de mecanismos que viabilizassem sua candidatura, chegando a argumentar na Corte Constitucional que a imposição de limites de termos é uma violação dos direitos humanos sob a Convenção Americana de Direitos Humanos. O argumento foi aceito pela Corte, que aprovou a submissão de sua candidatura nos tribunais eleitorais, permitindo assim mais um mandato presidencial para Morales. Novamente, por mais controverso que seja, devemos lembrar que na Bolívia juízes podem atingir estes postos através de eleições diretas, causando grande politização no judiciário. Como se pode imaginar, essa situação é utilizado pela oposição como argumento para criticar medidas pró-governo tomadas pelo judiciário.

Assim sendo, Morales foi encaminhado para seu quarto mandato presidencial consecutivo nas eleições de 2019. Naturalmente, sua candidatura foi um assunto extremamente polarizante no país e causou um mal-estar em diversos grupos políticos que temiam que Evo, no fim das contas, não estaria disposto a aceitar um resultado negativo nas eleições e nem sequer deixar que alguém de seu partido pudesse herdar seu governo.

De fato, uma ampla parcela dos bolivianos acredita que Morales fez um trabalho muito bom enquanto presidente durante todos esses anos, e de fato sua administração obteve resultados econômicos e sociais invejáveis para outros países da América do Sul. Ainda assim, muitos parecem ter ficado cansados dele. “Não se pode assistir 30 minutos de televisão sem ver o rosto dele”, disse uma moradora de La Paz. “Ele não poderia aceitar que perdeu uma eleição justa, por isso tem que se vitimizar” disse um morador de El Alto antes das eleições. Como se pode notar, existia um sentimento ambivalente, de certa gratidão pelo que Morales proporcionou, mas também de preocupação quanto até onde ele estaria disposto a ir para permanecer no poder.

É nesse cenário de polarização, fragmentação política e incerteza que as eleições de 20 de outubro 2019 chegaram, e é aqui que a história fica confusa. Uma vez que as urnas se fecharam e os votos passaram a ser contados nos dias seguintes, reações e demonstrações adversas aconteceram ao redor do país: Com os resultados preliminares indicando a vitória em primeiro turno de Morales, o governo declarou vitória, enquanto a oposição acusou Evo de ter manipulado as votações.

Nos dias seguintes, ondas de protestos contra o governo e as supostas fraudes e embates violentos entre militantes da oposição e do governo praticamente tiraram o controle de Morales do próprio país. Sem conseguir oferecer uma narrativa suficientemente convincente de sua vitória, somado à elaboração de um documento da Organização dos Estados Americanos (OEA) que sustentava a ocorrência de fraudes eleitorais, Morales aceita uma auditoria deste órgão e de observadores independentes, que acabam por confirmar irregularidades no processo. A pressão nas grandes cidades e no meio rural, que já somavam dezenas de mortes, chegou ao clímax com essas novas acusações, ao ponto que autoridades nacionais e internacionais começaram a abandonar a defesa de um novo governo Morales. Até mesmo sindicatos e membros de seu partido o abandonaram a essa altura, mostrando que ele havia de fato perdido total controle da situação. Isolado, os militares e policiais bolivianos abandonaram sua proteção, o que pesou em sua renúncia no dia 10 de novembro. Com isso, Morales retirou-se do país rumo ao exílio político, seguido de diversas outras renúncias no governo, eventualmente chegando ao México.

Com a crise eleitoral agora tornando-se também uma crise sucessória, visto que os sucessores diretos do presidente também se retiraram do governo, o cargo de presidente passa para a vice-presidente do Senado Jeanine Áñez, que forma um governo interino responsável pela elaboração de novas eleições em até 90 dias. No entanto, fica claro rapidamente que a estabilidade ao voltaria para o país tão cedo.

Como forma de reestabelecer ordem, o governo impõe-se coercitivamente sobre os movimentos sociais e o MAS, que ainda apoiavam Morales e denunciavam um golpe em curso; ao mesmo tempo que o governo Áñes montava alianças com grupos sectários políticos e até fundamentalistas, para sustentar politicamente esse governo de transição. O que se observou nos meses seguintes foi uma espiral de violência e perseguição política, abrindo espaço para severas violações de Direitos Humanos, desabastecimento de grandes cidades. Não devemos esquecer que, para piorar a situação, o documento elaborado da OEA passou por duras críticas de metodologia uma vez que a poeira abaixou, tornando a sustentação deste novo governo ainda mais difícil.

Policiais Militares em meio aos protestos na capital La Paz poucos dias após o início do mandato interino de Jeanine Áñes. Foto: Manuel Claure/Reuters

Ainda assim, governo conseguiu sobreviver até a realização de novas eleições, mesmo após ter que adiá-las por conta da pandemia do novo coronavírus

O que podemos concluir com tudo isso? Uma possível visão que explique uma reação como essa é de que as atitudes do presidente nos anos anteriores à eleição de 2019 serviram como um alerta, pois demonstraram a intenção de adquirir mais poder do que a Constituição o havia garantido. Isso se torna particularmente evidente com a decisão de levar a questão de um novo mandato para as Cortes de justiça, apesar da rejeição da população já ter sido clara em dizer não apenas um ano antes.

Agora, antes de continuar, que fique bem claro: não estou justificando um golpe. Não digo que Morales, a Bolívia ou quem quer que seja merecia ser submetido ao que aconteceu. O fato de que Morales tentou subverter, continuamente, a democracia boliviana não justifica de forma alguma uma reação violenta como a que ocorreu. Que fique claro que a remoção do presidente e a reconfiguração do poder no país se baseou na coerção sem respaldo legal, o que deve ser rejeitado pelas entidades democráticas do país — e por qualquer pessoa com compromisso democrático –, da mesma forma que nada justifica a virada autocrática que Morales apresentou principalmente em seu último mandato.

Justamente o fato de que as instituições bolivianas encarregadas de impedir a deterioração da democracia não agiram como deveriam e até mesmo colaboraram com o processo autocrático — primeiro de esquerda e depois de direita — mostra que estas instituições infelizmente não atingiram um grau de maturidade capaz de frear a minagem de si mesmas, o que de certa forma reflete o extenso passado de crises do país.

Então, o que exatamente podemos chamar aquilo que aconteceu em novembro de 2019? Um golpe ou uma defesa da Constituição? Um contragolpe ou um golpe em um golpe? Como referimos no início, este texto não tenta providenciar respostas finais a todas as perguntas, e sim iniciar uma discussão de longa duração. E acredite, poderíamos ficar bastante tempo discutindo questões de como rotular um evento ou movimento, mas o foco não é esse.

Por fim, olhemos agora para a Bolívia de 2020, cujas eleições de outubro deram a Luis Arce, do MAS, a presidência do país, com segunda colocação de Carlos Mesa, ex-presidente do país e líder candidato pela coligação Comunidad Cívica. Ao contrário do que se poderia imaginar, o retorno do MAS ao poder não deve ser confundido como o triunfo da demagogia ou de um projeto autocrático deste partido sobre a democracia boliviana. Pelo contrário, tanto Arce quanto Mesa eram dois candidatos que no Brasil seriam considerados moderados e pragmáticos por seus partidos. Arce, por exemplo, não é nem de longe carismático como Morales, sendo considerado extremamente técnico, tendo em vista seu passado como economista ultra-ortodoxo, além de ter criticado o próprio ex-presidente por ter ignorado o plebiscito de 2016. Da mesma forma, Mesa foi um crítico duro da incompetência política e das medidas autoritárias que o governo de Áñes cometeu no último ano.

Luis Arce, atual presidente da Bolívia, na esquerda, e na direita Evo Morales, quando este se encontrava em Buenos Aires após fugir da Bolívia. Foto: Augustin Marcarian/Reuters

Assim sendo, as eleições foram inesperadamente tranquilas e muito menos polarizantes, com os candidatos perdedores aceitando a derrota sem contestar os resultados, o que gera a interpretação de que houve, ao menos no momento, a superação dos impulsos autoritários da esquerda e da direita, servindo assim de lição para países que atualmente sofrem com governos mais autoritários: é sempre possível superar o autoritarismo e retornar à democracia. Depende somente da vontade das pessoas pelo diálogo ao invés da força. Resta, é claro, saber se no caso demonstrado isso será durável.

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João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha | Colunista de Política da Revista Brado.