Crise global, presidente boçal e o futuro da computação

Felipe de Rossi Audibert
Revista Brado
Published in
5 min readJul 8, 2021
Foto: Erik Gazi/Unsplash

A pandemia da Covid-19 levou parte significativa da força de trabalho para casa, que por sua vez buscou atualizar os equipamentos eletrônicos para o uso no lazer e principalmente na nova modalidade de trabalho. A isso se somou a máxima histórica de valorização das criptomoedas e o boom do 5G demandando respectivamente placas de vídeo e chips especiais. O mercado mergulhou numa crise de falta de oferta. Os preços explodiram e gigantes como a Toyota e a GM pararam linhas inteiras por falta desses semicondutores.

Na contramão do interesse público, o governo Bolsonaro fechou a Ceitec, única fábrica de semicondutores da América Latina 100% independente, um esforço coletivo do governo federal, da iniciativa privada e da UFRGS que em quase 13 anos de existência vinha realizando o catch-up tecnológico e já produzia projetos próprios, carregando a esperança da presença brasileira nesse que é o quarto produto mais comercializado no mundo e provavelmente a mais tecnológica indústria da atualidade. Posto o desabafo, ficam-se as dúvidas: o que é um semicondutor e mais especificamente uma GPU?

A primeira pergunta é fácil. Semicondutores são materiais que alteram sua característica entre condutor e isolante elétrico. É controlando essa característica que são construídos transistores e outros componentes eletrônicos que compõem os computadores modernos. Já para segunda é necessário lembrar como é organizado um computador.

Arquitetura de Von Neumann, veja mais sobre em meu outro texto linkado no final.

Independente do ano ou modelo do seu notebook, ele com certeza segue a lógica de organização da arquitetura de Von Neumann (do mesmo jeito que toda casa é diferente, mas todas possuem quartos e portas). A CPU (Central Process Unit) é a parte principal de um computador: ela recebe seus comandos, controla todos os componentes, realiza as contas, acessa a memória e no final devolve as informações. Pense nela como o cérebro.

Processador Intel I9.

Acontece que ele não era mais o suficiente. Com o aparecimento de jogos e animações surgiu a necessidade de calcular milhares de pixels da tela algumas vezes por segundo (para cada frame). Porém, as operações matemáticas feitas em cada pixel não são difíceis, o problema agora é a quantidade. Para isso nasceu as GPUs (as placas de vídeo), que são basicamente várias CPU’s fracas juntas — como se a CPU fosse um doutor em matemática e a GPU fossem centenas de crianças do fundamental. Para resolver uma equação difícil as crianças não servem, mas quando o trabalho for fazer muitas contas de adição e subtração as crianças ganham em números, e farão isso muito mais rápido.

GeForce RTX 3090.

Posto o conceito, apareceram usos cada vez mais engenhosos das GPU’s. Um bom exemplo são os shaders, filtros como os de Instagram que aplicam determinadas contas para todos os pontos da imagem e produzem efeitos diversos.

‘’Cartoon” shader. Aplicado para dar uma aparência e desenho em filmes e jogos.
Vertex shader. Trabalha nos vértices de imagens 3D fazendo com que sejam necessários menos polígonos para simular um objeto complexo e assim diminuindo o custo de processamento.
Geometry shader.

Como é muito comum na história, tecnologias “inúteis” feitas apenas para entretenimento encontram depois aplicações nas mais diversas áreas.

Um desses usos é precisamente parte de um dos nossos problemas do começo do texto. Minerar Bitcoin. Essa moeda virtual busca imitar o ouro — o motivo é econômico e não será discutido, mas assim como o metal, essa moeda possui uma quantidade finita e ninguém começou com toda ela, diferente do dólar que os EUA imprimem e distribuem. Para resolver o problema da distribuição dessas moedas foram criadas “dificuldades”, contas matemáticas fáceis, mas muito volumosas (perfeito para placas de vídeo). Resolvendo elas, descobre-se um número que corresponde à moeda. A grande magica é que descobrir esse número é difícil, mas confirmar que ele é real é fácil — muito parecido com sudoku, aonde se tem um trabalho grande achando o valor para cada quadrado, mas para confirmar se está certo basta confirmar se as regrinhas simples foram seguidas. Muito se é debatido sobre as consequências dessa “dificuldade” criada, e de fato o impacto ambiental é grande, pois a mineração de bitcoin no mundo consome tanta energia quanto a Argentina inteira, fora os efeitos no preço das placas de vídeo usadas em outras aplicações.

Galpão de uma empresa de mineração com milhares de placas dedicadas.

Assim como no bitcoin, as placas encontram grandes espaços no processamento de dados e em inteligência artificial, pois as redes neuronais são treinadas em GPU’s. É também uma das soluções encontradas para superar o fim da lei de moore, sendo hoje um tópico quente nas empresas e universidades a computação paralela. Esses dispositivos curiosos fazem parte da história da computação e vieram para ficar. Espero que da próxima vez que ligar seu notebook você veja a tela com outros olhos e fique tão maravilhado quanto eu com a quantidade de genialidade e engenhosidade por trás de algo simples como pontinhos coloridos numa tela.

E claro, que logo os pontinhos coloridos não mostrem mais o rosto de um presidente que nega a ciência e o avanço tecnológico que o país tem potencial de oferecer, mas de um novo líder que saiba aproveitar a posição única do Brasil no mundo para reerguer a indústria nacional de semicondutores. E que esteja pronto para nossas cobranças caso não o faça.

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Felipe de Rossi Audibert
Revista Brado

eng-elétrica UFES, Aluno LabTel, membro da Vitória Baja e colunista de ciência e tecnologia da revista Brado.