Complexo de Cinderela: a mulher sábia edifica o lar?

Laura Mafra Boechat
Revista Brado
Published in
6 min readSep 12, 2021
Reprodução/500 Dias Com Ela

“A mulher certa é capaz de consertar o homem errado” talvez seja uma das maiores falcatruas que toda mulher escuta no decorrer da vida. Grande parte das mulheres têm, atrelada ao seu imaginário, a ideia fantástica de mudar um homem “fora dos trilhos” e fazer dele um príncipe encantado, alcançando, assim, seu felizes para sempre. Mas, cá entre nós, essa ideia não passa de mais um devaneio para minar nossos potenciais — e consequentemente de ser protagonistas da nossa própria trama.

Há tanto em campos filosóficos quanto literários e religiosos uma mística de que a mulher é predestinada ao papel regenerador. Isto é, sua missão e papel nada têm de aprimorar a si mesma, mas sim voltar-se à missão de seu homem, a fim de ajudá-lo em sua jornada de herói. Esse estereótipo da mulher delegada ao lar é tão obsoleto quanto atual. Afinal, a emancipação feminina é uma realidade inquestionável. No entanto, ainda assim, somos submetidas a todo tipo de conteúdo que romantiza a ideia de moldar o parceiro, assumindo responsabilidades que nada têm a ver com nosso crescimento pessoal.

A Bíblia diz que “a mulher sábia edifica o lar”. Seguidamente, temos velhos ditados reproduzidos até hoje que também expressam essa ideia (“por trás de todo grande homem existe uma grande mulher”). Mesmo no entretenimento encontramos, de forma velada e enfeitada, essa ideia absurda de que é não só possível, como também nosso papel, fazer com que o homem com o qual nos relacionamos se aperfeiçoe, seja em sua vida pessoal ou dentro da própria relação.

Já se deparou com alguma personagem feminina de beleza ímpar, personalidade excêntrica, encantadora e espírito aventureiro, mas pouco aprofundada na trama? Aquela que, apesar de cativante, você não conhece a história, os gostos ou as aspirações. Pois é, esse tipo de personagem é chamada de Manic Pixie Dream Girl (algo como garota-fada-maníaca-dos-sonhos). Apesar de terem grande potencial, o objetivo dessas mulheres no enredo não passa de inspirar o protagonista homem a perseguir seus objetivos. O termo foi criado em 2007 por Nathan Rabin, crítico de cinema, em seu texto sobre o filme Tudo Acontece Em Elizabeth Town, para designar a personagem vivida por Kirsten Dunst.

Summer, uma das grandes Manic Pixie Dream Girls do cinema. Reprodução/500 Dias Com Ela

O padrão de realização através do matrimônio tem nome: complexo de Cinderela. No conto de fadas, Cinderela é salva de uma vida de humilhação e exploração pelo príncipe, encontrando realização pessoal através da união romântica. Assim, somos ensinadas desde pequenas que nossa alegria reside no outro, e não em nossa independência. Não há satisfação fora da vida doméstica.

Reprodução/Cinderela e o Príncipe Encantado

Apesar de neste século a convenção da mulher do lar ter se enfraquecido devido à maior inserção feminina no mercado de trabalho, a ideia de que nos realizamos como sujeito através dos nossos pares permanece. Aliás, várias tramas colaboram para essa visão deturpada da boa mulher que salva o homem de si mesmo. Em Metrópolis, livro de Thea von Harbou que deu origem ao filme de mesmo nome, temos Maria como uma luz divina de esperança entre os operários engolidos por uma cidade gigante, viva e injusta. Ela é a voz que dá tom à esperança do corpo proletário. Maria então é notada por Freder, nobre filho do Deus que governa essa cidade. Rapidamente, se torna uma salvadora para um homem vazio, que antes voltava-se unicamente ao gozo dos prazeres mundanos e irreais que o dinheiro de seu pai proporcionava. Maria é a mulher sábia, edificadora, a mudança, o impacto. Mas logo percebemos que também não é ela senão um fantoche na história. Ao fim, Maria é salva pelo seu amor, que mudou devido à sua afeição e esforço de boa mulher. Ela passa do papel de transformadora e inspiradora, com sua própria história, para o par romântico que faz de seu homem forte e respeitável.

Reprodução/Maria em Metrópolis

Mesmo em histórias que aparentam narrar mulheres poderosas e cheias de aspirações, ainda somos colocadas na posição de reabilitar homens. Em A Bela e a Fera, somos apresentados a uma protagonista intelectual e de personalidade forte. Mesmo com todos os atributos para se tornar uma mulher emancipada, Bela se anula em um castelo para curar a Fera, um príncipe transformado em besta devido aos próprios pecados. Bela, assim como Maria, anula suas próprias características para salvar um homem de si mesmo, ser um acessório.

Apesar de a mulher assumir participação ativa nesse cenário — ela age sobre o homem –, ela permanece na posição de serva, de ama. Tal como Eva em relação a Adão, ela é uma extensão do homem com quem se relaciona. Isso porque ela trabalha para que o homem se otimize. Renega sua existência, sua essência, suas atividades e interesses em prol de melhorar o outro ao invés de si mesma, alcançando a felicidade apontada no Complexo de Cinderela. Esse complexo, apesar de construído socialmente, está imbuído no inconsciente feminino até mesmo das mais esclarecidas. Nós crescemos sob esse contexto e aprendemos a gostar de ser cuidadas, negligenciando nossos próprios desejos. Para ilustrar a contemporaneidade do complexo, voltemos às Manic Pixie Dream Girls. Segundo a escritora e roteirista Laurie Penny, o conceito amplamente difundido nas telonas faz com que “o homem cresça esperando ser o herói de sua própria história. Já a mulher cresce esperando ser a atriz coadjuvante de outra pessoa”. Que tipo de conquista é essa?

Imagem: Pexels

As conquistas masculinas são aquisições próprias: uma boa posição no trabalho, uma casa, carros. À mulher, resta acrescentar algo ao outro: consertar um homem “perdido”, cuidar para que os filhos sejam boas pessoas, zelar pela casa que pertence ao homem. E isso não é à toa — também não passamos de mais uma das conquistas masculinas. Desde tempos remotos, somos passadas de pai para marido, não apenas como objeto, mas como moeda de troca entre homens. Em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir aborda as teses de Lévi-Strauss mencionando que o casamento entre pessoas sem grau de parentesco não foi fruto do incesto. Na realidade, foi socialmente útil que nos tornássemos comercializáveis para trocas entre clãs. “É preciso que o grupo não consuma, a título privado, as mulheres que constituem um de seus bens e sim que faça delas um instrumento de comunicação”. Sempre fomos produtos, mas esse estereótipo não nos cabe mais. Por isso, é necessário romper não só com a ideia da realização através do casamento, como também a de salvar o outro para que possamos nos salvar.

Logo, não é de se surpreender que, ao passo que o homem deve dominar a mulher e se fazer seu senhor, cabe a ela a posição passiva e servil, que resultará no seu êxito em vida. Além disso, quando necessário, buscar conduzir esse homem pelo caminho da luz, indo contra a perdição. Nunca, porém, ela própria deverá subir ao trono, mas servir de estepe para que seu par suba. Ser sua conselheira, sua fada madrinha, sem expressão ou personalidade. Apesar de, por vezes, parecer a grande figura principal, como Maria em Metrópoles e Bela em A Bela e a Fera, ela nada mais é do que personagem secundária para o triunfo do protagonista — que é o homem.

O Complexo de Cinderela não cabe apenas às mulheres do passado e o conceito de Manic Pixie Dream Girl não se restringe às personagens do cinema. Esses apenas refletem a nossa realidade, bem como a impactam. Devemos parar de tentar refinar os homens como açúcar, esse não é papel cabível às mulheres. É necessário que vejamos nossas vocações para além do amor, que lutemos pela nossa própria emancipação. Que expressemos nossas vontades, nossos anseios, medos e performemos nossa individualidade. Casas não são castelos, e não é conquista alguma transformar um homem. Não devemos ter medo da independência: só ela é capaz de proporcionar sucesso.

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