Crônica | Cidade Suspensa

Beatriz Heleodoro
Revista Brado
Published in
3 min readJun 5, 2022
Cidade de São Paulo. Foto: Pixabay

P essoas diferentes passeiam por entre os carros. Todas, porém, têm algo em comum. Parecem andar sem horizonte nos olhos, como se estivessem indo e vindo por poderem apenas ocupar aquele espaço. Um olhar pousa sob o capô do carro para se desviar um segundo logo depois, como se não pudesse encontrar nenhum outro. Do lado de dentro, os vidros sobem e os telefones são escondidos, como se fosse natural ter medo. Como se pudesse apenas sentir horror por quem vaga pelo lado de fora. Homens fardados passam por entre eles, carregando fuzis como se estivessem prestes a enfrentar um inimigo de guerra. Para garantir a paz. Não a de quem está na guerra, nem a de quem anda pelos carros, a de quem está dentro deles. Buzinas competem com os sons de conversas aos gritos, pombos voando, fogueiras sendo acesas, barracas sendo montadas — na esperança de abrir caminho e não ter que estar ali nem mais cinco minutos. “Não ande por aqui”, é o conselho. Que se desdobra em: não olhe, não chegue perto, não dê papo, não os conheça. Continue com o rosto virado para frente, com os filtros acústico e visual de quem todo dia os encontra no caminho e não os escuta nem enxerga. Porque todo dia é a mesma coisa: a mesma ronda armada para garantir a paz; os mesmo vidros elétricos que sobem automaticamente; o mesmo trajeto — como se fosse só mais um trajeto; as mais de quinhentas pessoas que ocupam as ruas da cidade grande. De um lado, prédios abandonados no centro histórico da cidade mais populosa do Brasil. Do outro, 530 pessoas ocupando praças que possuem homenagens a símbolos do exército. Invisíveis. São cinco centenas de pessoas juntas que não atingem uma parte significativa da tela para serem percebidas. Não têm nome, nem voz, nem corpo, nem alma. Não devem ter identidade, RG, certidão. Não têm nada. Não podem ser vistos como se fossem algo. São nada?

O que muda menos ainda são os olhos de quem acompanha o trajeto, mesmo sendo pessoas diferentes de dentro dos carros. O que têm em comum? Também negam os encontros com quem não carrega nenhum horizonte no olhar. Passam pelo caminho e quando chegam ao destino já se esquecem do que viram. Os mesmos olhos que admiram as obras de arte moderna de dentro dos museus atravessam as ruas sem cruzar com quem está nelas pedindo para ser visto. São olhos de quem tem casa, comida, água, saúde, afeto. Que negam casa, comida, água, saúde, afeto. Que determinam que eles nada merecem, além de pena — na sociedade que cultua a meritocracia, não tem nada que seja deles por mérito, muito menos por direito, apenas o horror, a dor, o sofrimento. Tudo que os pertence lembra o vazio. Não pertencem à cidade, não são dignos dela. E, se indignos, não merecem conviver no mesmo espaço de quem tudo tem. Ocupam, então, os espaços que sobram, são alvos de operação, migram para outros espaços. Seguem peregrinos. Sem nunca pertencer a nenhum lugar, sentir que possuem algo. Continuam sem ser vistos. Continuam sem nome, sem casa, sem misericórdia. Como Severino, morrem e vivem. E morrem de novo.

Seguem pelas ruas. Mudam-se os trajetos. Tudo continua igual. Cidade suspensa, sem contemplação.

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