CRÔNICA | Mais um dia

Beatriz Heleodoro
Revista Brado
Published in
3 min readAug 15, 2021
Foto: Pixabay

D ona Cristina acorda quinze pras seis da manhã com um estrondo. Sabe que o som, meio oco, não veio do céu — que está limpo, com os raios de Sol cortando a sua janela. Como o barulho veio de longe, imagina que deve ter sido no segundo andar. Seu Paulo, seu vizinho, deve ter derrubado alguma coisa enquanto se arrumava pra trabalhar. Sonolenta, vira para um lado e para o outro, para descansar um pouco mais. Não se passam dois minutos e mais um estrondo, dessa vez, acompanhado de dor. Dona Cristina, então, sabe: não é nada com o céu ou seu vizinho, é seu estômago avisando “estou com fome”. Inspira coragem e levanta para mais um dia.

Se sua história fosse contada há alguns anos, Dona Cristina seria musa de Chico Buarque, daquela que “todo dia faz tudo sempre igual”.

Saberíamos que ela acordava diariamente às 6h da manhã, passava um café e acordava seus três filhos com um sorriso pontual. Enquanto eles se aprontavam para a aula, buscava 8 pães de sal frescos na padaria. Juntos à mesa, comiam (e repetiam) pão com manteiga e café com leite, adoçado com açúcar. No começo do mês, tinha queijo e presunto pra acompanhar. Os meninos iam para a escola, ela deixava o feijão de molho e a carne descongelando, pegava sua marmita que preparou na noite anterior e, antes das 8h, saía para trabalhar. Chegava em casa às 18h, pegava o óleo, lavava o arroz, colocava o macarrão no fogo, picava o tomate e a batata, preparava a janta. Fazia o que tinha que fazer e ia dormir para esperar mais um dia.

Mas as coisas mudaram um pouco de lá pra cá, não só para Cristina e sua família, mas para 23,5% da população brasileira, que passou a viver com insegurança alimentar moderada ou severa entre 2018 e 2020, segundo a ONU.

O queijo e o presunto foram cortados da lista de compra e o que eram 8 pães passaram a ser 4, sem manteiga. Ao longo do mês, a carne de primeira começou a ser substituída por partes mais simples do boi e já não tinha tanta opção pro almoço: ou arroz e feijão ou macarrão. “Salada pode ficar um pouco de fora”, pensava e, assim, não comprava mais batata ou tomate. A alimentação saudável se tornou inacessível.

Agora, Cristina continua acordando às 6h da manhã com um sorriso pontual. Só que não para trabalhar. Como parte da população brasileira, está desempregada devido à pandemia da Covid-19 e ainda está na fila de espera do Bolsa Família. Cristina acorda às 6h porque sente fome. Já passa da metade do mês, o kg do pão de sal está R$ 11,90, o que dá quase 6 pães. Quando coloca no papel, os R$ 11,90 logo viram quase R$ 360 num mês. “Melhor beber café”, decide. Coloca uma colher de pó de café na água que antes costumava receber três. A bebida rala não enche, na verdade, parece que só ecoa o vazio do estômago.

Pro almoço, tem quatro ovos na geladeira. “Se quebrar um e colocar farinha, dá pra render pros meninos. Tem que durar até o final do mês”, ela pensa. Ainda falta muito pra janta, mas ela já pensa no arroz que vai dar para os quatro. Ela se deita às 19h para enganar o cérebro, o estômago ou qualquer outro órgão que possa perceber que o arroz não foi suficiente e faça a barriga voltar a doer. O tempo que era cronometrado do seu dia agora é cruel, cada minuto marcado no ponteiro do relógio traz a esperança do fim de mais um dia e a angústia do começo de mais um.

Para Cristina e para 49,6 milhões de brasileiros, cada dia é mais um dia de fome.

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