Democracia assintomática

A variante golpista do Jair

Anderson Barollo Pires Filho
Revista Brado
6 min readJul 16, 2021

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Os invisíveis de São Paulo e do Brasil. Fotografia: Lalo de Almeida.

Imagine a seguinte situação: uma eleição presidencial, bastante polarizada, é acusada de ter sido fraudada. A acusação é feita pelo próprio presidente da República, que tenta a sua reeleição e afirma possuir provas de que a apuração dos votos daquele pleito foi adulterado.

O mesmo presidente, sem apresentar as tais provas, fez essas mesmas imputações antes e durante toda a disputa eleitoral. Agora derrotado, o candidato se recusa a reconhecer o resultado das urnas e convoca seus seguidores e militantes a marcharem rumo à sede legislativa do país e exigirem uma recertificação dos votos e o reconhecimento da sua reeleição.

Insuflados pelo ainda chefe do Executivo, milhares de seus apoiadores invadem o Congresso e protagonizam um momento sem precedentes na história do país: uma tentativa de autogolpe. Resultado? Confrontos entre civis e a polícia, prédios evacuados, toque de recolher na capital, quatro mortes, dezenas de feridos e uma insurreição malsucedida.

A invasão ao Capitólio incitada por Trump, nos EUA, também contou com laços militares. 10% dos acusados pela insurreição são veteranos ou atuais membros do serviço militar, é o que aponta documentos judiciais e registros do Pentágono. Crédito: AFP

Embora ultrajante, a situação que você acaba ler de fato aconteceu e no país considerado, por muitos, a maior democracia do mundo: os Estados Unidos. Em pleno 2021, os norte-americanos vivenciaram algo, até então, inimaginável em seu sistema democrático.

Mas o que pode ser lido como um resumo factual da história recente do EUA também pode ser uma espécie de presságio, ou profecia não intencional, da nossa conjectura política aqui no Brasil. E não: não se trata de alardes ou exageros, e sim de uma tempestade perfeita que vem sendo semeada dia após dia pelo inquilino do Palácio da Alvorada.

“O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa”, disse o presidente da República em um jantar com lideranças políticas em Washington (EUA), em 2019. Fotografia: Alan Santos/PR

Voto impresso e a paródia golpista à brasileira

Assim como Trump fez no EUA, Bolsonaro vem acusando, quase diariamente, a lisura do nosso sistema eleitoral. A retórica do ex-presidente americano se resumia na seguinte teoria: os votos enviados por correios — que sempre existiram no país e que por conta da pandemia acabaram tendo uma maior adesão — seriam fraudados e o Partido Democrata, seu adversário no pleito, era quem comandava a “máquina corrupta” do processo eleitoral.

Já a narrativa do presidente brasileiro, que vem sendo empregada a mais de um ano das próximas eleições, é a de que o voto pela urna eletrônica não é confiável e que há um conluio entre o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o PT, seu principal adversário, para fraudar as próximas eleições de 2022.

Para impedir um problema que não existe, mas que foi criado pela sua própria teoria, Bolsonaro vende uma solução: o voto impresso auditável. Mas e se essa “solução” na verdade fosse um cavalo de tróia? Você entenderia? Permita-me explicar.

Pausa da leitura: Antes de continuar, deixo aqui um convite para os interessados sobre o tema do voto impresso: visitem a matéria abaixo, escrita em parceria com as minhas colegas e também colunistas da Brado Luisa Cruz Ribeiro e Mylena Ferro, e saiba mais sobre a pauta. A matéria foi uma atividade prática para a disciplina laboratorial de Jornalismo Online na Universidade Federal do Espírito Santo.

Sem entrar no mérito da agenda, propriamente dita, do voto impresso — que tem sim elementos de base legítimos mas que precisa ser discutida de uma maneira muito mais criteriosa e em um momento mais oportuno — o fato é que essa discussão não é prioritária no Brasil e as urnas eletrônicas estão longe de ser um problema em nosso país. Ao contrário, nosso sistema eleitoral é uma das poucas coisas que nos colocam na vanguarda do mundo democrático.

Porém, mesmo não havendo nenhuma carência factual e pragmática em nosso processo de votação, criou-se, propositalmente, uma candência em torno da pauta e isso, somente, já basta para o presidente da República.

Bolsonaro sabe que dificilmente a agenda do voto impresso terá êxito caso seja levada ao plenário do Congresso Nacional — e as dificuldades não se dão somente no campo político; mas também sob o aspecto jurídico.

Além da falta de apoio parlamentar — dirigentes de 11 partidos, incluindo aliados do governo, já se posicionaram contra a PEC do voto impresso –, também há um impasse no campo legal. Já há uma jurisprudência recente no Supremo Tribunal Federal (STF) que considera a proposta inconstitucional. Em 2011 e 2018, os ministros da Suprema Corte declararam que a medida colocaria em risco o sigilo e a liberdade de voto.

Em 2018, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu ao STF que derrubasse a exigência da impressão dos votos pelas urnas eletrônicas, alegando que o procedimento colocaria em risco o sigilo do voto em casos de falhas ou travamento na impressão do papel na urna. Segundo Dodge, tais situações poderiam demandar a intervenção de um terceiro para que solucione o problema, o que poderia acarretar na exposição do voto já registrado pela cabine de votação. Foto: José Cruz/Agência Brasil

Defender o voto impresso, hoje, como pauta prioritária, é meramente uma questão discursiva. Não há viabilidade política nem jurídica para a implementação do voto impresso e a defesa dessa agenda é puramente incitar o debate público e travar uma guerra de narrativas. E repito: o presidente sabe disso.

Não só sabe como também já colhe os louros da sua estratégia. A justificativa para uma eventual, e provável, derrota no ano que vem já está posta. O que ele vende como a “solução” para “combater a fraude”, na verdade, é um cavalo de Troia para as eleições de 22.

Só há dois caminhos possíveis para a PEC do voto impresso hoje: não ser aceita sequer pelos parlamentares (que é inclusive o mais provável que aconteça) ou o STF declarar, pela terceira vez em dez anos, a proposta inconstitucional. Em ambas situações, Bolsonaro já tem munição suficiente para a sua fábula golpista.

O intuito do ex-capitão é claro: manter seus apoiadores mais fiéis, o núcleo duro da sua base eleitoral, mobilizados. E nisso, Jair é cirúrgico. O golpe está aí e cai quem quer e também quem não quer.

Estejamos alertas

Conspirar contra o próprio sistema que os elegeu, não apresentar nenhuma prova que embase suas acusações, alimentar uma militância de extrema-direita populista — são inúmeras as semelhanças, não ocasionais, entre Donald e Jair.

Essa simetria não é mero acaso. É um processo que tem método: mentira vira verdade, covardia se torna coragem, histeria passa a ser sobriedade, grosseria se transforma em diplomacia, alienação se converte em libertação e a ignorância se converte em inteligência. A expertise mora justamente nessa subversão sociolinguística.

A novilíngua do Jair é uma realidade. É preciso entendê-la e combatê-la com inteligência, união e bom senso — mesmo fora de moda nos últimos tempos, esses ainda são os principais valores e meios para vencer a barbárie.

Entre a pandemia do vírus e da desinteligência, seguimos com uma democracia cada vez mais assintomática. Até quando?

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Anderson Barollo Pires Filho
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