Democratas não afagam ditadores

Precisamos estreitar as relações da América do Sul. Nos indispor com democracias sul-americanas para defender uma ditadura não colabora

João Vitor Castro
Revista Brado
6 min readJun 1, 2023

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“Em fevereiro de 1992, um tenente-coronel venezuelano comandou uma tentativa de golpe militar em Caracas. O plano fracassou e, após uma segunda rebelião em novembro do mesmo ano, Hugo Chávez foi preso.

Aos 30 e poucos anos quando de sua insurreição frustrada, o oficial via seu país atravessar uma intensa crise econômica e política, que viria a durar mais de uma década, e seu radicalismo acabou por conquistar a simpatia de alguns setores da sociedade.

Dois anos depois de sua prisão, o militar teve todas as acusações contra si anuladas pelo então presidente, um político experiente, que já havia comandado o país, e viu em Chávez uma oportunidade de renovar sua imagem. Ao deixar a prisão, um repórter perguntou para onde ele ia. O militar foi taxativo: para o poder.

Já na eleição seguinte, em 1998, Hugo Chávez foi eleito presidente da Venezuela, com imensa popularidade. A população, após 30 anos de uma democracia dominada por dois grandes partidos que se alternavam no poder, tinha em seu âmago um descontentamento crescente com a corrupção dos políticos tradicionais, e o agora presidente, com declarações polêmicas e radicais, prometia construir uma democracia mais autêntica.”

O trecho acima é de outro texto publicado nesta coluna em agosto de 2021. O objetivo era evidenciar as semelhanças entre o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez e o então presidente brasileiro Jair Bolsonaro. A conclusão do texto era que, apesar da resistência da esquerda e da direita em admitirem isso, não apenas as trajetórias dos dois típicos golpistas latino-americanos eram estranhamente similares, mas sobretudo que o sonho bolsonarista era a Venezuela chavista — a transformação, por vias democráticas, da mais longeva democracia do continente em uma democratura.

‘Democratura’ é um termo irônico utilizado em diversos contextos há décadas. Hoje, costuma ser empregado para se referir ao que ficou conhecido como ‘democracia iliberal’ ou ‘regime híbrido’, conceito que ganhou força com o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán. Em suma, se refere a países cujos líderes, democraticamente eleitos, trabalham pelo fim da democracia. Os maiores exemplos atuais de democracias iliberais são Hungria, Rússia, Venezuela e Turquia. Nesses países, ocorrem eleições periódicas, o que confere um verniz de democracia. Contudo, nenhum outro princípio democrático é plenamente respeitado. Foto: European People’s Party/Creative Commons

Isso é o que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece não entender, ao trocar afagos com o ditador venezuelano Nicolás Maduro, como o fez na última segunda-feira (29), ao recebê-lo em sua primeira visita diplomática ao Brasil em oito anos. Na ocasião, que antecedeu uma reunião com 11 lideranças sul-americanas no Palácio do Itamaraty, Lula chamou de “narrativas” as denúncias de desrespeito aos direitos humanos na Venezuela e a constatação de que o país é governado por uma ditadura.

Há pouco mais de dez anos, falas como as que Lula proferiu nesta semana seriam parte de uma política de íntima proximidade com os líderes da América do Sul, no contexto ainda da chamada maré rosa, quando a esquerda — em sua maioria democrática — ocupava o poder em quase todos os países da região. Contudo, agora, o efeito das falas de Lula foi a condenação imediata por parte de algumas das lideranças presentes na própria reunião.

O presidente uruguaio Luis Lacalle Pou, de direita, transmitiu pelo celular sua fala no encontro, na qual reclamou: “Se há tantos grupos no mundo que tentam intermediar para que a democracia seja plena na Venezuela, para que se respeitem os direitos humanos, o pior que podemos fazer é tapar o sol com o dedo. Coloquemos o nome que tem, e vamos ajudá-los”. Já o presidente chileno Gabriel Boric, de esquerda, afirmou em coletiva de imprensa: “Não é uma construção narrativa. É uma realidade. É grave e tive a oportunidade de ver o horror dos venezuelanos. Essa questão exige uma posição firme”.

Ao trocar afagos com o ditador da Venezuela, Lula se aproximou da política do perdedor da eleição de 2022. Era Jair Bolsonaro quem se indispunha com lideranças democráticas para permanecer ao lado de ditaduras que nada tinham a beneficiar o Brasil e os brasileiros.

Lula, que fique claro, é um político inquestionavelmente democrata. Perdeu três eleições e jamais questionou o resultado das urnas; cumpriu seus mandatos anteriores no tempo que mandava a Constituição e, ao fim, passou a faixa para a sucessora, eleita em um pleito livre e justo; enfrentou um processo comprovadamente injusto, foi condenado e se entregou às autoridades, permanecendo na prisão por quase dois anos. O presidente brasileiro, ao contrário do anterior, nunca deu sinais de uma guinada autoritária e sempre respeitou os ritos do cargo que ocupa.

O que Lula e seus aliados parecem não perceber é que esse é o motivo dele estar morando novamente no Palácio da Alvorada. O Brasil não emprestou a faixa presidencial a Lula outra vez por ser um líder de esquerda, mas por ser um líder democrata. O Brasil que respirou aliviado em 1º de janeiro e que se emocionou com os símbolos da passada de faixa e do discurso do petista no Planalto não foi apenas o Brasil dos partidos e movimentos de esquerda, mas o Brasil que não suportava mais o autoritarismo, o negacionismo e todos os demais desastres do governo Bolsonaro. A eleição de 2022 — e isso deve ficar sempre claro — foi decidida em zonas eleitorais tradicionalmente conservadoras que, mesmo assim, deram a vitória a Lula. Por isso, a última coisa que o Brasil que elegeu Luiz Inácio deseja é vê-lo às carícias com um ditador.

A Venezuela, presidente Lula, é uma ditadura. Pouco importa se uma ditadura de esquerda ou direita — não é assim que funciona a cabeça de um democrata. O governo Maduro é um governo autoritário, ilegítimo, empossado em eleições conspurcadas, sustentado sobre milícias políticas, que fere cotidianamente diversos direitos humanos, que prende e tortura opositores e que, por isso, deve ser condenado por todo democrata de qualquer vertente.

A política externa do atual presidente foi, em seus primeiros mandatos, um de seus maiores destaques positivos, mas também teve suas falhas. Uma delas foi a proximidade não só com ditaduras de esquerda, mas com seus ditadores. Naquele momento, em que a democracia brasileira estava solidificada, que a maré rosa tomava conta do continente americano e que a estabilidade democrática em todo o Ocidente não era gravemente ameaçada, essas falhas eram pequenas ilhas no mar de acertos da política externa brasileira. Hoje, são continentes.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O risco iminente de um golpe de Estado no Brasil acabou, mas a democracia está longe de estar solidificada. Parte significativa de nós, brasileiros, infelizmente ainda sonha com um governo autoritário — a la Venezuela. Por isso, o Lula 3 precisa se mostrar mais democrata que os Lulas 1 e 2. E o papel central de um democrata em um cenário de crise da democracia é inspirar o sentimento democrático. Democratas inspiram pelo exemplo, e Lula, infelizmente, não tem dado os melhores.

Retomar as relações com a Venezuela é positivo, afinal, se fôssemos cortar relações com todas as ditaduras, isso teria de incluir nosso maior parceiro comercial, a China, que em breve deve se consolidar como a maior potência do mundo — e isso não deve ser do interesse de ninguém. Além disso, o isolamento da Venezuela em nada ajudou o povo venezuelano e menos ainda melhorou o tratamento dos direitos humanos no país. Não há mal em Lula se encontrar com Maduro nem em convidá-lo para uma reunião bilateral e uma visita oficial em Brasília. Contudo, reaproximar o Brasil da Venezuela em nada tem a ver com trocar elogios com o seu ditador.

As denúncias contra o governo venezuelano não são mera narrativa de uma direita golpista, presidente. Mas aqui, sobre o seu governo, há narrativas de uma direita golpista. Narrativas essas que o acusam falsamente de conspurcar as eleições de 2022 e trabalhar pela implantação de uma ditadura de esquerda. Narrativas que mobilizaram um atentado terrorista no coração do poder uma semana após a sua posse. Enaltecer uma ditadura de esquerda conspurcadora de eleições em nada ajuda no combate às narrativas — essas sim narrativas — que afrontam a democracia — essa sim democracia — brasileira.

O governo Maduro tinha a forma do sonho do governo Bolsonaro, não do governo Lula. Por que, então, Lula insiste em enxergar o continente sob o prisma da Guerra Fria? Ditaduras, presidente, são ditaduras. Pare de dar armas aos golpistas que tentaram usurpar a eleição que o colocou onde agora está. O povo brasileiro elegeu um democrata. Respeite a vontade do povo e seja o democrata que o Brasil espera. E verdadeiros democratas não afagam ditadores.

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João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).