Do golpe militar à festa da democracia: várias faces do mesmo domingo

Pare no D.

João Vitor Castro
Revista Brado
5 min readNov 15, 2020

--

“Proclamação da República” (1893), óleo sobre tela, Benedito Calixto (1853–1927) — Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo

Neste ano atípico de pandemia, home office, protestos de massa, reviravoltas pelo mundo e sem olimpíadas, nada como este domingo (15) para ser a cereja do bolo de tantas estranhezas. Em decorrência da Covid-19, nosso Congresso Nacional tomou a decisão — acertada — de adiar a data das eleições municipais. E o curioso é que o dia que marca o exercício de cidadania a duras penas conquistado contra o governo golpista de 1964–85 tenha sido realocado justo para o aniversário do primeiro golpe militar de nossa República: a sua própria proclamação.

Já sabemos as diferenças teóricas entre um golpe e uma revolução¹, e bem por isso podemos dizer, sem peso na consciência: nossa república é fruto de um golpe. E não para por aí: sabemos também que nossa república nasce — ao contrário da francesa, da norte-americana e de muitas outras — do revanchismo de uma elite agrária escravocrata e de um sentimento de superioridade intelectual das forças armadas. E também sabemos que nosso segundo governo republicano foi uma aberta tirania; e que os primeiros 40 anos de república foram dominados — única e exclusivamente — pela mesma elite que já dominara Colônia e Império e que ainda domina muito da Nova República.

Machado de Assis é um dos tantos casos de embranquecimento de gênios em nossa sociedade racista. Apenas em 2019 um projeto recriou sua clássica fotografia o colocando como realmente era: um homem negro que ascendeu através de sua genialidade e entrou para a história como um dos maiores escritores que o mundo já viu. Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Machado de Assis, em sua obra “Esaú e Jacó”, descreve a Proclamação da República em um episódio cômico, no qual um comerciante, dono da “Confeitaria do Império”, manda trocar a tabuleta de seu estabelecimento, que já estava velha, carcomida e suja. Quando ocorre então o golpe republicano, a nova tábua ainda não está pronta, contando apenas com “Confeitaria d”, e o comerciante então avisa: “Pare no D.”, pois não sabia se era melhor terminar a palavra “império”, sob o risco de que o país continuasse república, ou inserir “república”, sob o risco de um contragolpe fazer voltar o império. Assim, o genial Machado reduz a Proclamação a uma mera troca de letreiros de confeitaria, que, na prática, nada mudaria além daquilo.

E é em meio a essa sina que nos é tão peculiar de mudanças de tabuletas que no fim nada dizem, que aprendemos a construir, em doses de conta-gotas, um pensamento de fato republicano. A despeito do que certa parcela dos poderosos nos almeja convencer, nós aprendemos sim a conviver com a res (coisa) pública e com suas instituições — eles é que não aprenderam.

É do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre a máxima de que o homem é condenado a ser livre, mas pensamento similar já circulava pelos iluministas Voltaire e Rousseau e por movimentos republicanos como a Inconfidência Mineira, de 1789. Foto: Reprodução

O republicanismo, diferente do que muitos pensam ainda hoje, não é meramente uma forma de governo na qual os poderes se independem, na qual prazos são estabelecidos e cidadãos se projetam na vida pública. O republicanismo é, antes disso, o entendimento iluminista de que o homem é condenado a ser livre, e a nada mais. É a ideia de que a posição dos que me conceberam não deve ditar a minha posição; de que o sangue de quem me governa não deve ditar quem me governará depois. Será?

Na síntese, sem dúvidas; na tese, não. Na origem, o republicanismo é a ideia de governo desenvolvida por um grupo de pessoas de alto poder aquisitivo e nenhum poder político, prejudicadas por outro grupo de pessoas com alto poder aquisitivo e absoluto poder político, a fim de destituir-lhes aquilo que até então se pensava ser deles por direito — a quem preferir, um resultado da luta de classes.

E, sem dúvida alguma, não foi o republicanismo que golpeou o príncipe português em 15 de novembro; mas a luta pura e simples pelo poder. Mas foi essa luta, enfiada goela abaixo dos brasileiros que “assistiam a tudo bestializados”, que fez germinar em nós o sentimento republicano. Qual?

João Cândido, o “Almirante Negro”, líder da Revolta da Chibata. Foto: Arquivo Nacional (1961)

Basta olhar para a nossa história: foi o republicanismo brasileiro que fez as Revoltas da Armada; da Vacina; de Canudos; da Chibata; que pôs o velho em 1930 e que tirou em 45, para botar de novo em 50; que resistiu aos golpes que se organizavam; que morreu nos porões da ditadura; que foi para a rua nas Diretas; e que festejou a Constituição. E foi o republicanismo, também, que foi para a rua em 2013.

A história do Brasil, ao contrário das muitas versões elitistas que a narram, é uma história de luta e de conquistas, de um povo bravo e dedicado à busca por melhorias e pelo mínimo aceitável de dignidade. Ainda assim, é claro, temos muito a avançar.

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Robert O’Brien, usam bonés com a frase “Make Brazil great again” (Faça o Brasil grande de novo), paródia da frase de campanha de Donald Trump, “Make America Great Again”. Foto: Marcos Corrêa/PR

E que coincidência que o aniversário do golpe, que parabeniza também o nosso republicanismo efervescente, seja o dia de expressarmos a nossa vontade nas urnas. E que coincidência ainda maior que, em plena “festa da democracia”, cidades inteiras estejam sem luz; e que famílias inteiras estejam desoladas pela perda de mais de 160 mil vítimas da Covid-19; e que essas sejam, ainda, chamadas de “maricas” por aquele que deveria zelar pelas vidas dos nossos — não pelas negociatas dos seus. E que brutal coincidência que esse mesmo “líder” celebre a interrupção dos testes de uma vacina; e que desfira bravatas contra a diplomacia; e que utilize a máquina do Estado em benefício próprio; e que se feche em acordos e acordos com as elites mais tradicionalmente sujas e golpistas deste país — do café ao leite.

Poucas vezes tivemos um feriado tão republicano como este, em que celebramos uma filosofia e a aplicamos nas urnas; e poucas vezes tivemos, simultaneamente, uma chefia de Estado tão anti-republicana como esta.

Se a tese de um golpe nos impôs a síntese de uma filosofia, é essa filosofia que hoje agoniza, deitada esplendidamente sobre as tão conhecidas botas e bengalas do poder e do golpismo.

Pare no D.

--

--

João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).