Dois pesos e duas medidas

A retórica da extrema-direita no caso Queiroz

Mateus Cunha Salomão
Revista Brado
5 min readJun 20, 2020

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Foto: Fabrício Queiroz sendo conduzido pela polícia. Reprodução/Nelson Almeida/AFP

Na manhã da última quinta-feira (18), foi preso Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, filho do atual presidente. Comecemos do começo.

Antes de se eleger senador, impulsionado pela popularidade de seu pai, atual presidente da República, Flávio Bolsonaro foi deputado estadual pelo Rio de Janeiro de 2003 a 2019. O trabalho de um deputado não é tarefa fácil — ou pelo menos deveria exigir grande esforço –, logo, cada um tem direito a uma equipe de assessores para auxiliá-lo dentro das funções parlamentares.

É aí que entra outra peça do quebra-cabeça: Fabrício Queiroz. Ex-policial militar, foi contratado como assessor parlamentar no gabinete de Flávio. Ocorre que, durante o período em que trabalhava na Assembleia, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras detectou transações suspeitas na conta do assessor, uma vez que possuíam valor incompatível com o salário percebido.

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) foi criado durante a reforma no sistema econômico, realizada no governo de Fernando Henrique Cardoso. Possui o intuito de identificar atividades ilícitas no âmbito de lavagem de dinheiro. Na conta de Queiroz, foi ligado o sinal de alerta após movimentações de R$ 1,2 milhão entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017.

Assim, a Polícia Federal começou a investigar o esquema de corrupção conhecido popularmente como “rachadinha”. Em termos simples, um servidor público repassa parte de seu salário para o político que o contratou, de forma direta ou através de “intermediários”. No Direito, existe uma discussão sobre em qual crime a conduta se encaixa. Os argumentos mais aceitos são que a tipificação é encontrada no crime de peculato-desvio (art. 312 do Código Penal), no qual um funcionário público desvia dinheiro ou qualquer outro bem em proveito próprio ou alheio; ou no crime de corrupção passiva (art. 317 do Código Penal), no qual se recebe uma vantagem indevida em razão do cargo público.

Queiroz foi chamado para depor inúmeras vezes e não compareceu à delegacia. Entretanto, na manhã da última quinta-feira, ele foi preso, encontrado na casa do advogado de Flávio, Frederick Wassef.

As “coincidências” são muitas e impossíveis de ignorar. A ligação da família Bolsonaro com Queiroz fica cada vez mais evidente. Resta a dúvida: qual o argumento utilizado por aqueles que seguem na defesa da completa inocência do clã Bolsonaro?

Fabrício Queiroz, à esquerda, e Flávio Bolsonaro, à direita. Foto: Reprodução/Instagram

A resposta pode ser encontrada na retórica de “dois pesos e duas medidas”. Essa expressão é antiga e sempre teve seu uso relacionado à ideia de Justiça. É o que se diz em em Deuteronômio 25:13–16:

“Não terás em tua bolsa duas espécies de pesos, uma pedra grande e uma pequena. Não terás duas espécies de efás, um grande e um pequeno. Tuas pedras serão um peso exato e justo, para que sejam prolongados os teus dias na terra que te dá o Senhor, teu Deus. Porque quem faz essas coisas, quem comete fraude, é abominável aos olhos do senhor, teu Deus”.

Ou seja, estaria cometendo uma injustiça aquele que, em análise de um caso semelhante, utilizasse critérios diferentes mediante sua vontade e para satisfação própria.

Esse recurso é utilizado à exaustão pela extrema direita. A título de exemplo, nas manifestações a favor do governo Bolsonaro, é comum a presença de bonecos de Lula como presidiário, a insensível e degradante imagem da ex-presidente Dilma de “pernas abertas” no tanque de gasolina de um carro e diversas outras ofensas. E, quando a imagem de um boneco de Bolsonaro é exposta em redes sociais em condições semelhantes, a indignação e comoção da direita são grandes e desproporcionais.

Foto à esquerda: Dispensa legenda. Twitter/Reprodução. Foto à direita: Boneco de Jair Bolsonaro sendo hostilizado. Facebook/Reprodução

Essa mesma retórica também gera falsas simetrias. Há uma constante tentativa de colocar na mesma balança duas situações que não são nada semelhantes. Nas manifestações recentes que empregaram o slogan “Vidas Negras Importam”, surgiu uma contramanifestação com a frase no sentido de que “Todas as Vidas Importam”. De fato, todas importam, mas são as vidas negras que mais sofrem com violência policial e injustiças do sistema.

Um exemplo ainda mais gritante: há aqueles que defendem a Ditadura Militar, notoriamente um regime com práticas de censura, e, concomitantemente, se queixam da falta de liberdade de expressão ao expor ideias neonazistas, racistas, homofóbicas, entre outras.

Trazendo para o caso Queiroz, a utilização dos pesos diferentes se mantém. Quando o filho do ex-presidente Lula, conhecido carinhosamente como “Lulinha”, começou a ser investigado na seletiva Operação Lava Jato, o discurso da extrema direita era uníssono: “Tudo farinha do mesmo saco, não é possível o cara ter um filho corrupto e ser inocente”.

É a famosa frase postada em uma rede social pelo filho 02 do presidente Jair Bolsonaro:

Reprodução/Twitter

Agora, com as investigações fechando sobre Queiroz e Flávio Bolsonaro, os pesos e medidas mudam. O discurso é outro. “Se for corrupto, que seja preso. O presidente Bolsonaro não manda nos filhos dele”.

A conclusão que se chega é que a extrema direita tem se utilizado dos instrumentos de discurso que melhor se adaptam à realidade que ela mesma quer pintar. As pedras não são um peso exato e justo. Torçamos, então, para que os dias na terra dessa retórica desleal não sejam prolongados.

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Mateus Cunha Salomão
Revista Brado

Graduando em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória — FDV. Pesquisador de Direito Penal e Direito do Trabalho | Colunista de Justiça da Revista Brado.