E o país do swing… É o país da contradição…

O Direito à Cultura e o desmonte de suas políticas públicas em um país que deveria ser conhecido por sua diversidade

Rodolfo Nascimento
Revista Brado
6 min readMar 16, 2021

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Passistas de frevo em frente ao Mosteiro de São Bento, Olinda/PE. Foto: Passarinho/Prefeitura de Olinda

Jack Soul brasileiro
E que som do pandeiro
É certeiro e tem direção
Já que subi nesse ringue
E o país do swing
É o país da contradição

Na canção “Jack Soul brasileiro”, Lenine exalta o Brasil como “o país do swing”, uma característica que pode ser compreendida por vários aspectos, dentre eles o cultural. O reconhecimento que nosso país tem por possuir uma diversidade de manifestações culturais e artísticas surpreende a todo o mundo. O país do swing é o país do axé, do samba, do forró e de uma vasta qualidade em todos os aspectos que envolvam a cultura e a expressão de arte.

Seja pelo carnaval, quase sinônimo da palavra Brasil, conhecido e transmitido para todo o mundo; até ao Maracatu, expressão artística regionalista que possui um sincretismo religioso, originado no estado de Pernambuco. A diversidade cultural brasileira que atravessa a música, a dança, a culinária, a arquitetura, a literatura, dentre outros, é parte registrada da história e da estrutura nacional.

Parte complementar da sociedade, as mais diversas manifestações culturais se integram à identidade de um país, e sua exaltação não se restringe apenas à apreciação, se torna política pública e de extrema importância, e assim se protege o legado e valoriza nosso patrimônio.

Foto: Passarinho/Prefeitura de Olinda

Por tamanha importância, o constituinte brasileiro atribuiu como garantia prevista em nossa Carta Magna uma seção “Da Cultura”, com a finalidade de exaltar e preservar esse bem popular.

O artigo 215 da Carta Magna estabelece que o Estado deve garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes de cultura nacional, além de apoiar e incentivar que esse material seja valorizado e difundido. Sendo assim, o direito à cultura pode ser compreendido como um direito fundamental, onde há competência estatal para regular a temática e garantir o acesso por toda a população.

Visto se tratar de um direito fundamental integrante da segunda dimensão de direitos, seccionado na competência de regulação, são necessárias legislações especiais para que de maneira efetiva seja colocada em prática a determinação do artigo 215 e seguintes.

Encontro das Banda de Congo e Festa do Caboclo Bernardo, na Vila de Regência, litoral de Linhares/ES. Foto: Divulgação/Prefeitura de Linhares

Desde a promulgação do texto constitucional, as principais mudanças ocorreram pelas Emendas Constitucionais nº 48/2005 e nº 71/2012. A primeira se refere ao Plano Nacional de Cultura, que cria relação entre o desenvolvimento cultural com as ações do poder público para defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro. Dentre as determinações do plano, visa a formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura. A segunda emenda trata do Sistema Nacional de Cultura (SNC), que organiza em regime de colaboração a promoção conjunta de políticas públicas de cultura. Essas devem ter caráter democrático e permanente.

Além das alterações constitucionais, as legislações infraconstitucionais devem ser estabelecidas para traçar diretamente quais medidas, projetos e políticas devem ser tomados. A mais conhecida é a Lei nº 8.313/1991, a Lei Rouanet (atual Lei de Incentivo à Cultura), que estabelece o Programa Nacional de Apoio à Cultura. A popularidade da referida lei se deve às políticas de incentivo que são concedidas a projetos culturais. Ou seja, a utilização de dinheiro público como fomento para criadores, autores, artistas, técnicos, entre outros.

Central do Brasil, filme dirigido por Walter Sales, utilizou recursos da Lei de incentivo à cultura. Imagem: Reprodução

Válidas as críticas quanto aos critérios utilizados e a preconização de sua distribuição, a legislação tem ao longo dos últimos anos sido utilizada como pauta ideológica para restringir e deslegitimar o que se entende por cultura. Esse incentivo é cerceado, e se apresenta como chantagem por parte do governo federal.

Eis a contradição: não suficiente o swing, a diversidade cultural que possuímos e a proteção constitucional, o desmonte e a desvalorização da cultura nacional parecem dominar a política federal sobre o tema, contrariando a determinação legal.

De Ministério da Cultura a Secretaria Especial, vinculada ao Ministério do Turismo, as determinações constitucionais de pleno exercício dos direitos culturais têm sido desprezadas nos últimos anos, e o país do swing, símbolo da diversidade cultural, vem se contradizendo ao negar suas raízes e limitar sua percepção de cultura.

Nos resta apenas a cultura de massa, que embora seja uma distração confortável e necessária em contrapartida à nossa realidade, limita a sociedade que se acomoda e permanece impedida de pensar e refletir criticamente sobre a vivência que é posta.

De acordo com Walter Benjamin, sociólogo alemão, quanto mais o significado social de uma arte diminui, mais o público se afasta do aproveitamento, das críticas e das atitudes. A arte impulsiona a compreensão das imposições que regem nossa existência. Compreensão essa que atravessa as percepções individuais.

A diversidade e especificidade presentes na cultura brasileira por vezes são padronizadas e limitadas, e assim retirado seu caráter de singularidade, produzindo uma massa de consumo, com a finalidade de controlar e definir o mercado cultural e a maneira como ele se manifesta. Essa reprodutibilidade, para Benjamin, se torna uma problemática quando há uma modificação dos seus modos de influência, atingindo a análise crítica do indivíduo.

Peça “Selfie”, por Mateus Solano e Miguel Thiré no Teatro Pedra do Reino, em João Pessoa. Foto: Vitor Zorzal/Divulgação

A informação começa a ser repetida, o que o sociólogo classifica como o caráter de reprodutibilidade técnica, sinônimo de repetição, retirando a “áurea” da obra de arte, fazendo com que não tenhamos mais uma memória sobre ela.

Por áurea, Benjamin compreende o caráter único que uma obra possui, a capacidade de uma expressão artística despertar além da contemplação, a memória. Com o processo de reprodutibilidade, fruto da indústria cultural, se perde essa memória, levando à repetição desse conteúdo como cultura de massa.

A cultura brasileira é exemplo prático dessa áurea. As manifestações artísticas, regionais e folclóricas demonstram a riqueza da expressão e da representação de um povo através da arte. Cada apresentação, filme ou dança são únicas e carregam com si a identidade de nosso povo. A Constituição Federal tenta proteger essa áurea, e garantir a manutenção da mesma. Para manter viva a cultura, é necessário apoio, investimento, reconhecimento e principalmente valorização.

Valorização do nacional, do brasileiro. Enaltecimento de nossa fauna e flora, apreciação dos nossos povos e ancestrais. Esse ideal se faz com políticas públicas de real condecoração da importância que a cultura tem para a sociedade. A politização da arte restaura sua áurea e, mesmo que reproduzida em massa, sua mensagem consegue provocar reflexão e senso crítico.

Carnaval brasileiro, desfile da Portela no Carnaval do Rio de Janeiro de 2014. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Para impedir que nossa cultura tão vasta seja reduzida à ignorância e desprovida de valor social, é preciso resgatar a importância que ela tem para nossa sociedade. O direito à cultura deve ser exigido, manifestado e respeitado. Atualmente, existe uma série de agressões aos valores culturais em nosso país, um descaso proposital, decorrente de desejos autoritários e antidemocráticos, que desejam alienar e impedir o pensamento livre e revolucionário, e assim permanecer em contradição.

Já que somos brasileiros, como diria Lenine, devemos entender que o samba não é rumba.

Este texto possui informações de “A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica”, por Walter Benjamim e do “Manual de Direito Constitucional”, por Nathalia Masson.

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Rodolfo Nascimento
Revista Brado

Capixaba. Estudante de Direito. Diretor de Pesquisa da Associação Atitude Ubuntu. Editor e Colunista da Revista Brado.