EDITORIAL | Bruno e Dom foram mortos pela necropolítica do Estado brasileiro

O indigenista brasileiro e o jornalista britânico já estavam sentenciados muito antes de 5 de junho

Revista Brado
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5 min readJun 16, 2022

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Foto: Sergio Lima/Poder 360

N a tarde desta quarta-feira (15), os irmãos Amarildo e Oseney da Costa confessaram envolvimento no assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, desaparecidos desde o último dia 5. Bruno e Dom foram mortos após fotografarem áreas de pesca ilegal no Vale do Javari, uma área intensamente atacada por madeireiros, garimpeiros, grileiros e pescadores ilegais, como os irmãos Costa, que admitiram ter esquartejado, incinerado e enterrado os corpos do brasileiro e do britânico, que teriam sido mortos por tiros efetuados por um terceiro ainda não identificado.

Este editorial, contudo, não se dedica a narrar o que já vem sendo exaustivamente narrado pela imprensa tradicional, que acompanha com responsabilidade o caso e cobra por respostas desde o desaparecimento da dupla. O objetivo deste texto é lembrar do trabalho de Bruno e Dom e contextualizar as suas mortes como parte fundamental da trama de horror que vem sendo escrita sobre este país.

Bruno Pereira era considerado um dos maiores especialistas em povos isolados no país e serviu durante anos na Fundação Nacional do Índio (Funai), exercendo diversas funções, entre elas a coordenação regional do Vale do Javari. Em 2018, tornou-se coordenador da área responsável por indígenas isolados e recém-contatados, quando chefiou a maior expedição dos últimos 20 anos para contato com esses povos.

Foi a partir daí que o indigenista passou a coordenar ações de fiscalização de garimpeiros ilegais que se instalavam na região do Vale do Javari, a segunda maior terra indígena do país. Em setembro de 2019, uma operação comandada por ele destruiu ao menos 60 balsas de extração ilegal. Apenas um mês depois, Bruno foi exonerado do cargo e pediu uma licença sem remuneração da Funai. Desde então, o indigenista trabalhava como assessor na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Já Domenic Phillips, conhecido como Dom, era um repórter britânico que veio a São Paulo em 2007 finalizar um livro que escrevia sobre música eletrônica. A ideia era fazer uma passagem rápida pelo país, mas acabou ficando de vez. Pouco depois se mudou para o Rio e conheceu a esposa, Alessandra Sampaio, natural da Bahia, para onde o casal se mudou em 2020. Além de jornalismo, Dom era apaixonado por stand up paddle e pelo meio ambiente e também dava aulas de inglês como professor voluntário na periferia de Salvador.

Dom trabalhava como repórter freelancer para jornais como The Guardian, New York Times e Washington Post. Fez diversas viagens para cobrir a situação ambiental e indígena na Amazônia, e em uma delas, em 2018, conheceu seu amigo Bruno Pereira, com quem viajou para o Vale do Javari outras diversas vezes. No momento do desaparecimento, Dom Phillips estava trabalhando em um livro sobre o meio ambiente e a Floresta Amazônica.

Bruno, de 41 anos, deixa esposa e dois filhos, de dois e três anos. Dom, de 57, deixa esposa e o sonho de adotar uma criança. De Pernambuco e de Liverpool para o Vale do Javari, Bruno e Dom foram as mais recentes vítimas do colonialismo brasileiro, que segue explorando, escravizando, torturando e matando com o afago da mão amiga do Estado.

É até infantil o ímpeto de apontar para uma ou outra autoridade de forma avulsa como culpada pela criminalidade que matou o indigenista e o jornalista. Mas é claro que há sangue nas mãos de autoridades que discursaram em campanha se gabando da promessa — muito bem cumprida — de não demarcar um centímetro de terra indígena. Autoridades que não foram apenas permissivas com o garimpo, a grilagem, a pesca ilegal e o tráfico de madeira; mas verdadeiras patrocinadoras dessas atividades. Sim, o rastro do sangue de Bruno e Dom chega a Brasília, mancha a Esplanada dos Ministérios, empoça o Congresso Nacional e jorra sobre o Palácio do Planalto.

Mas a venda das nossas terras indígenas e de nossas áreas de proteção ao crime organizado envolve uma rede muito maior de figurões poderosos que lavam as mãos nos rios de sangue que correm pela Amazônia brasileira. Há assassinos em palácios, em prefeituras, em câmaras municipais, em assembleias legislativas, em quartéis.

Bruno Pereira foi assassinado quase 30 anos após outro ambientalista e estudioso, este capixaba: Paulo Cesar Vinha. Assassinado por dois irmãos do setor de construção civil após fotografar áreas desmatadas e extração ilegal de areia numa região protegida de restingas, entre Vila Velha e Guarapari, no Espírito Santo.

Dom Phillips foi assassinado dois dias antes do Dia Nacional da Liberdade de Imprensa, enquanto escrevia um livro sobre as matas do país que já era tão seu quanto de Bruno, e muito mais seu e de Bruno que dos assassinos que lhes arrancaram a vida ou dos engravatados que abriram esse caminho pernicioso.

A ansiedade, agora, é por descobrir quem — ou ‘quens’ — está por trás do assassinato desses brasileiro-britânico-javaris que deram a vida pelo que acreditavam, ou melhor, que deram a vida por continuar exercendo, com excelência, apenas o trabalho para o qual se dedicaram. Mas algumas coisas já sabemos. Podemos não conhecer os rostos de todos os assassinos da dupla, mas conhecemos bem as políticas e os projetos de destruição e morte que culminaram, diretamente, na morte do indigenista e do jornalista.

Bruno morreu fazendo o que ele nasceu para fazer: lutar até a morte pela preservação dos povos aos quais dedicou toda a sua vida. Dom morreu fazendo jornalismo de qualidade, de verdade: jornalismo com lado, e o lado das vítimas da violência e da conivência do Estado. Bruno e Dom morreram sendo parte do que o Brasil tem de melhor.

Há sangue no Amazonas; há sangue no Pará; há sangue em Rondônia; há sangue em Brasília. Cabe a nós a limpeza, antes que o rio de sangue nos afogue de uma vez por todas.

Este texto representa toda a equipe da Revista Brado.

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