EDITORIAL | Marcas do genocídio: o cemitério macabro dos 300 mil

Atingimos a triste marca de 300 mil mortos pela Covid-19 sob a sombra da indiferença

Revista Brado
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6 min readMar 24, 2021

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Homenagem realizada no Rio de Janeiro aos primeiros 100 mil brasileiros mortos por Covid-19, em agosto de 2020. Foto: Fernando Souza/Getty Images

N a tarde de hoje, 24 de março de 2021, o Brasil atingiu a dura e cruel zona de 300 mil vítimas fatais da Covid-19. O país está na pior fase da pandemia e a média móvel de mortos está acima dos 2 mil por dia. Apenas ontem (23), foram 3.158 vidas perdidas.

A primeira morte foi há pouco mais de um ano, em 12 de março de 2020. Até lá, porém, apesar do medo, as coisas pareciam controladas. Havia um consenso aparente de que precisávamos nos cuidar e cuidar dos nossos, e parecia que todos cooperavam para a resolução da crise o mais rápido possível.

Foto: Reprodução (24.03.2020)

Até que chegou 24 de março, exatamente um ano atrás. Foi nessa fatídica data que o presidente da República se posicionou do outro lado da trincheira, encampando suas armas em favor não da saúde, mas do vírus. Pela noite, o líder máximo da nação se dirigiu por 5 minutos em TV e rádio à população, assim como no pronunciamento desta terça-feira (23). Ali começava o negacionismo típico da gestão de Jair Bolsonaro na pandemia. “Histórico de atleta”, “gripezinha” e “resfriadinho” foram algumas das expressões que marcaram o início da falsa dicotomia entre vidas e economia.

Depois disso, manifestações explodiram pelo país pedindo o fim do isolamento; alguns empresários encamparam a ideia de que “o Brasil não pode parar por 5 ou 7 mil mortes”, como aludido por Junior Durski, dono da rede Madero; governadores e prefeitos bolsonaristas afrouxaram as medidas; muitos que estavam se cuidando passaram a se descuidar; e iniciou-se uma batalha pública entre o presidente e o ministro da Saúde.

Jair Bolsonaro poderia, naquele momento, ter adotado o caminho natural de qualquer líder diante de um cenário de crise: apostar no óbvio, na ciência, na vida, em unir o país contra um inimigo comum. Muitos líderes em quem Bolsonaro diz se inspirar adotaram esse caminho. O exemplo mais célebre é o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que adotou duras medidas de isolamento em diversos momentos da pandemia e já vacinou mais de 50% de sua população com duas doses.

Mas Jair preferiu o caos. Em sua aparente necessidade instintiva de estar na contramão de tudo que se faz consenso, o presidente adotou o caminho do embate, do negacionismo, da aglomeração, da contaminação, do descaso, da antivacina, da anticiência, da antidemocracia. O resultado era óbvio: a morte.

É claro que as 300 mil vidas perdidas não são culpa direta do presidente. Mas o papel de um líder diante de um cenário como esse é inquestionável. Basta olhar ao redor: por que países cujos líderes adotaram posturas responsáveis de combate à pandemia tiveram sucesso? Por que Nova Zelândia, à esquerda, e Israel, à direita, se mostraram tão certos, apenas seguindo os conselhos da ciência? Por que os cidadãos norte-americanos tiveram uma mudança tão radical de padrão de comportamento diante da pandemia com uma mera troca de presidentes?

Porque em sociedades democráticas o líder máximo da nação não é um zé ninguém. Quer goste, quer odeie, há que se reconhecer que a voz daquele em quem mais de 50% dos compatriotas dedicaram confiança tem peso. E esse poder pode ser usado para o bem ou para o mal — conceitos muitas vezes relativos, mas não diante de uma pandemia. Em um cenário como esse, há o bem e há o mal; há o certo e há o errado. A morte de 300 mil cidadãos pela mais venal negligência, pelo mais vil descaso e pela mais espúria incompetência jamais será o bem ou o certo.

Esse poder foi usado para o mal por várias das autoridades máximas deste país incontáveis vezes nos últimos 365 dias. Uma das últimas, quando mais uma vez o presidente, na ocasião de seu aniversário de 66 anos, no último domingo (21), promoveu mais uma aglomeração, para distribuir pedaços de bolo aos seus apoiadores, depois de ter “lavado” as mãos no espelho d’água, as apoiado no chão para levantar-se e as enxugado na roupa. O presidente estava celebrando mais um ano de vida. Ele só se esqueceu que não se celebra a vida em um estado de morte, dias antes do país atingir a sangrenta marca de 300 mil mortos e promovendo uma aglomeração que pode levar a óbito outros tantos que ali estavam.

O senador Major Olímpio, que fez campanha com o presidente e foi líder do PSL, faleceu no último dia 18 vítima da Covid-19. O senador e o presidente estavam rompidos desde 2019. Foto: Gabriela Korossy / Câmara dos Deputados

Jair Bolsonaro brinca com a morte — e não só com a sua própria. Brinca e achincalha, ao promover mais aglomerações, ao infringir mais regras locais, ao não ser capaz de demonstrar empatia perante a morte asfixiante de mais de 300 mil brasileiros, muitos dos quais seus apoiadores, três dos quais senadores da República, um dos quais seu ex-aliado.

300 mil brasileiros cuja morte poderia ser evitada por um “fique em casa” proferido por aquele a quem dedicaram seus votos e protestos; por boa vontade na compra e distribuição de vacinas e na assistência aos mais vulneráveis; por respeito à ciência, ou ao menos por respeito à vida. Respeito, o mais básico sentimento que um líder deve ter perante os seus liderados. Respeito e responsabilidade podem salvar muitas vidas. Centenas de milhares, talvez.

Centenas de milhares de cadeiras não precisariam estar vazias na hora do jantar. Centenas de milhares de famílias não teriam de estar chorando a dor da perda de seus entes queridos. Centenas de milhares de crianças não precisariam estar crescendo na ausência de um pai ou uma mãe, ou os dois, vitimados pela Covid-19.

Entre março de 2020 e março de 2021, duas bombas de Hiroshima explodiram no Brasil; 1.224 boates Kiss foram incendiadas; 1.111 barragens de Brumadinho se romperam; 2.702 massacres do Carandiru foram praticados; 100 torres gêmeas foram derrubadas; uma população do tamanho de toda a cidade de Palmas (TO) foi assassinada pelo novo coronavírus. E o pior disso tudo é que esses números não mais nos abalam. Agimos com indiferença, como se todos esses brasileiros, com nome completo, CPF, RG e CEP fossem apenas números em uma estatística que avança a cada dia, com mais de 2 mil mortos a cada 24 horas e o silêncio avassalador de grande parte dos nossos governantes.

Há, porém, apenas uma coisa mais implacável que o vírus diante do cenário em que vivemos: a História. E quando chegar o momento em que nossas autoridades — da mais longínqua Câmara de Vereadores até o Palácio do Planalto — serão julgadas pelo tribunal da História, essa com H maiúsculo, ninguém desejará estar em suas peles. A história é implacável e saberá discernir, com a frieza da distância e a distância do olhar, quem lutou de que lado da trincheira.

E das câmaras municipais à presidência da República, passando por prefeituras, por governos estaduais, por assembleias legislativas e pelo Congresso Nacional, não serão poucos os condenados pelo duro martelo da História por terem aberto a porteira para o genocídio que já matou mais de 300 mil brasileiros, de todas as cores, de todas as classes e escolaridades, de todas as idades, de todos os sotaques, de todos os lados de um espectro político que novamente falhou em cumprir sua mais básica função: a defesa do direito fundamental da vida.

O Brasil vive um genocídio. E nossos agentes estão mais preocupados em perseguir os que desse substantivo adjetivam o presidente do que em conter o inimigo mortal que usurpa a vida de pais, filhos, esposos, avós e netos. A História os condenará. Ou a insônia, já que é impossível ter o sono dos justos quando se dorme em um travesseiro banhado em sangue de iguais.

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