Muito obrigado a todos!

A Revista Brado encerra suas publicações neste Dia Nacional da Liberdade de Imprensa

Revista Brado
Revista Brado
10 min readJun 7, 2023

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Logo definitiva da Brado, produzida em 2021 por Gabriel Silva.

três anos, em 7 de junho de 2020, esta Revista Brado publicava seu primeiro editorial. Era o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa mais importante de ser celebrado em décadas. A imprensa profissional estava sob inclemente ataque, e foi naquele momento que decidimos colocar em campo o nosso veículo, totalmente independente e autônomo.

Os meses anteriores foram de intensa preparação. A Brado começou a ser idealizada no final de 2019, e em fevereiro de 2020 já havia pelo menos vinte membros. Tivemos uma reunião para estabelecer como seria a revista. Daquele 16 de fevereiro, entre um café e outro, ainda não saímos com seu nome, mas definimos algumas coisas que nunca mudaram: esta seria uma revista independente, apartidária, plural, diversa e aberta para ser uma plataforma de diálogo, debate e interação de ideias distintas. Nossa linha editorial seria pautada por um único ponto em comum: a defesa inflexível da democracia, dos direitos humanos e das liberdades de expressão, opinião e imprensa.

Março chegou e, com ele, a pandemia da Covid-19. Nossas universidades fecharam, a princípio por duas semanas, e resolvemos esperar. As duas semanas viraram um mês, e então ficou nítido que esse “um mês” se prolongaria por pelo menos mais três. Dessa vez, não quisemos mais esperar.

Nas maiores emissoras de TV do país, programas de entretenimento eram reduzidos para alongar os jornais — quando não criar novos. O Jornal Nacional quebrava o protocolo, com seus apresentadores iniciando a transmissão pedindo “calma”. Na rua, repórteres eram agredidos fisicamente — como Dida Sampaio, do Estadão, que foi empurrado por bolsonaristas em frente ao Palácio do Planalto. O então presidente da República fazia pronunciamentos oficiais nos quais mentia descarada e impunemente para milhões de brasileiros, os incentivando ao descuido e ao risco de morrer e matar.

Aliás, a mentira se tornou a mais eficiente política pública brasileira naquele momento. Enquanto o presidente propagandeava remédios ineficazes contra a doença, grupos em redes sociais espalhavam vídeos de supostos médicos e enfermeiros defendendo a automedicação e teorias conspiratórias sobre a origem do vírus — quando não questionavam a sua própria existência. Nos bastidores, o Ministério da Saúde tentava falsificar os dados de mortes e infecções — o que fez a imprensa criar um consórcio para fiscalizar os números e garantir a transparência sobre a situação da doença no país.

Na Europa, caminhões carregavam os corpos direto para os cemitérios sem direito a velório. Uma a uma, as cidades brasileiras começavam a colapsar, enquanto, inflamada pelo governo federal, a resistência ao isolamento criava um clima de embate cotidiano nas maiores cidades do país. Manifestações golpistas começaram a ganhar força e se tornar cada vez mais abertamente golpistas.

Ao mesmo tempo, o mundo era sacudido por protestos antirracistas nos Estados Unidos e em partes da Europa e da América do Sul após o assassinato brutal de George Floyd. No Brasil, uma operação policial executou o menino João Pedro, de 14 anos, e manchou de sangue as paredes da casa de sua tia. O mundo estava do avesso.

Nós estávamos assustados. Tínhamos medo da doença, por nós e pelos nossos. Tínhamos medo de até onde aquela onda crescente de violência simbólica e física escalaria. Tínhamos, como todos, dificuldade para entender e absorver a totalidade do que estava acontecendo no Brasil e no mundo, do papel que a imprensa adquiria naquele contexto, do nosso papel. Ainda assim, entendemos que o desejo que nos movia para idealizar uma revista não podia mais aguardar uma normalização que não chegaria tão cedo.

À distância, separamos equipes e fizemos reuniões. Várias por semana, que duravam horas. Nos dividimos em dez editorias: Política, Economia, Cultura, Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia, Saúde, Justiça, Mulheres, Raça e LGBT+. Também criamos uma equipe de Comunicação e um núcleo de chargistas. Dessas reuniões, por vezes muito exaustivas, surgiu nome e slogan: “Revista Brado, para que todos possam ouvir”. Dispensa explicações.

Arte publicada no Instagram antes do lançamento da Brado, na primeira semana de junho de 2020.

A partir daí, a missão era desenvolver uma identidade visual e uma logo que fossem capazes de transmitir tudo que pretendíamos com a Brado. Nisso, foi mais um mês, pelo menos. Definição de cores, fontes, ideias para a logo, escolha do traço, símbolos que caberiam ou não utilizar e seus significados.

À equipe de Comunicação se juntou nosso amigo Gabriel Silva, que nunca foi membro da Brado, mas se dispôs a nos emprestar seu talento único e desenhar todas as nossas peças iniciais sem cobrar um centavo, e dessa união nasceu nossa primeira identidade visual, que não poderia ser melhor e mais representativa do que viria a ser a Brado. Após um ano, essa identidade foi substituída por uma nova, mais sóbria, proposta e elaborada pelo mesmo designer, que marcou uma fase de mais solidez e maturidade da revista.

Em nosso primeiro editorial, proclamamos:

“Esta Revista toma para sua estreia este dia como marco simbólico de como atuaremos: com ética, rigor e compromisso, defendendo acima de tudo e gozando da liberdade conquistada a duras penas por exímios e exemplares colegas de profissão e ídolos, que deram suas vidas e sua liberdade pela liberdade de informar. Governos e oposições são passageiros. A imprensa profissional, não.”

A verdade é que nós não sabíamos muito bem o que estávamos fazendo. Metade de nós éramos estudantes de jornalismo e publicidade. A outra metade eram estudantes de economia, medicina, relações internacionais, engenharia, administração, direito e psicologia. Nenhum de nós tinha a mais vaga ideia de como administrar um negócio, mesmo que colaborativo. O máximo de experiência que tínhamos era com voluntariado ambiental. Agora, assumíamos o desafio de levar a cabo uma revista, com doze equipes distintas, duas publicações intercaladas por dia, campanhas e projetos à parte. Simultaneamente, continuávamos com nossas faculdades, estágios e outros projetos. Tudo isso no meio de uma pandemia.

Primeira identidade visual da Brado, produzida em abril de 2020 por Gabriel Silva.

Olhando para trás após três anos, percebemos que a Brado tinha tudo para não durar nem seis meses. Afinal, ninguém nunca ganhou um real sequer para estar aqui — pelo contrário, muitas vezes despendemos dinheiro de nossos bolsos para custear anúncios e campanhas. Nunca recebemos recursos de nenhuma empresa, instituição ou organização, nem sequer os anúncios automáticos do Google. Apenas uma coisa nos mobilizava: a necessidade de dizer o que precisava ser dito.

Mesmo com todos esses ventos contrários, a Brado deu certo. Sempre tratamos nosso trabalho na revista como o que era: trabalho. Nossas rotinas eram flexíveis e adaptadas individualmente. Alguns publicavam mês sim, mês não; outros, toda semana. E todos honraram seus compromissos.

A Brado se fez presente nos principais debates do país nesses três anos, com o diferencial que sempre reivindicamos: uma abordagem abertamente opinativa, com lado, com viés, e que não se limitaria ao superficial e às manchetes do dia, aprofundando os assuntos, trazendo elementos novos, reconstruindo a história ou a origem daqueles eventos, apresentando análises sérias, honestas e bem fundamentadas.

Apenas um mês após nossa estreia, iniciamos uma campanha pela democracia. Também tivemos campanhas sobre Aids; abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes; Agenda 2030 da ONU; e mídias sociais. Nessas campanhas, toda a equipe da revista se integrava: as dez editorias e as equipes de Comunicação e charges, publicando artigos, reportagens, entrevistas e lives.

Na primeira campanha, entrevistamos personalidades como a epidemiologista Ethel Maciel, o economista José Luís Oreiro, os jornalistas Fábio Malini e José Antonio Martinuzzo, a ativista Deborah Sabará e os políticos Camila Valadão e Sergio Majeski. Em outros momentos, também foram nossas fontes o rapper Cesar MC, a escritora Bernadette Lyra, o biólogo André Aroeira e a atriz Laura Cardoso. Em 2020, participamos da cobertura do debate entre os candidatos à prefeitura de Vitória realizado pelo grupo Universidade Vai Às Urnas ES (UVAU-ES).

Nesses três anos, publicamos editoriais contra a violência policial, o racismo, a misoginia e a LGBTfobia, em defesa da democracia, da cultura e do meio ambiente. Em apenas dois momentos nossos editoriais tomaram posições político-partidárias mais evidentes: após o 7 de setembro golpista de 2021, quando defendemos abertamente o impeachment do ex-presidente Jair Bolsonaro; e no segundo turno das eleições presidenciais de 2022, quando declaramos apoio ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, por entender que Bolsonaro representava um risco real à democracia brasileira.

Após a vitória de Lula, celebramos a vitória da democracia e declaramos que não seríamos um veículo governista, mas manteríamos o caráter independente que sempre tivemos. Embora desde a metade de 2022 nosso fluxo e constância tenha diminuído, alguns dos textos publicados nesses primeiros meses de 2023 atestam o que prometemos no editorial: uma postura crítica em relação ao governo.

A Brado sempre foi uma revista com lado: o lado da democracia, da justiça e da ética. Esses foram, desde o início, nossos compromissos inabaláveis, pelos quais nos pautamos e os quais não deixamos de honrar em um texto sequer.

Nós não conseguimos realizar todos os projetos aos quais nos propusemos nesses três anos, mas temos muito orgulho de nossa trajetória e guardamos a certeza de que a Brado deu certo. Afinal, quando decidimos criar uma revista, jamais imaginávamos que seriámos lidos e acompanhados na frequência que fomos; que teríamos uma equipe fiel e dedicada por tanto tempo, de forma completamente voluntária; que levantaríamos debates tão importantes; que teríamos um crescimento modesto, mas totalmente orgânico.

Internamente, brincávamos que a Brado tinha entre seus colunistas alguns videntes. Eles “previram” aumentos inflacionários, catástrofes ambientais, guerras, ataques terroristas, circunstâncias e resultados eleitorais aqui e nos Estados Unidos e até os atentados de 8 de janeiro. “Como fica o Vasco esse ano, Frizzera?”, brincava Anderson Barollo em algumas reuniões da editoria de Política. Contudo, esses acertos nada tinham a ver com previsões, e essas “bolas dentro” só atestam a qualidade e a competência que nossa equipe sempre teve e da qual muito nos orgulhamos.

Isso não quer dizer que nunca tenhamos errado. Erramos, é claro, somos humanos. Aliás, esse também foi um ideal da Brado: ser uma revista humana, profundamente humana, disposta a brigar pelos valores e direitos dessa humanidade. E, sendo assim, passível de erros. Contudo, temos plena consciência de que nenhum dos erros que porventura tivermos cometido se deu por falta de competência ou compromisso ético.

Hoje, em seu aniversário de três anos, a Revista Brado encerra suas publicações. Esse final vinha sendo debatido e construído há alguns meses, e por diversos motivos. O principal é aquele que todos já tínhamos consciência quando fundamos a revista: cada um de nós tem uma vida além dela, e ela não seria a casa de nossas carreiras.

Apesar de todos os méritos que obtivemos enquanto equipe, individualmente somos todos profissionais recém-formados, com um longo caminho a ser construído no mercado de trabalho. Nunca foi nossa pretensão fazer da Brado um grande empreendimento, uma startup, um veículo competitivo, pois sempre tivemos a clareza de que construiríamos, durante e após ela, nossos próprios caminhos — o que não significa que não desejamos que nossos caminhos se cruzem novamente em novos ou velhos projetos.

Esse momento chegou para toda a equipe fundadora da Brado. Algumas alternativas foram estudadas, e resolvemos que o melhor para o ideal que construímos com ela seria o seu encerramento, por mais que essa decisão nos doa.

Além disso, encerramos a revista com a sensação de dever cumprido. É claro que o jornalismo — e nós, cada um em sua respectiva carreira, honraremos esse compromisso — tem de ser um eterno cão de guarda, mas o momento em que publicamos nosso último editorial em nada se compara com o de nosso primeiro.

Editoriais como o do nosso primeiro aniversário, em que declaramos que “enquanto nossos dedos não forem arrancados e nossas vozes não forem silenciadas, o Brado que ali nasceu não cessará de gritar”, hoje não fariam sentido. E sentimos um grande alívio e um grande orgulho por termos, de alguma forma, feito parte do processo que pôs fim a um momento de ameaça, medo e violência aguda ao jornalismo e à própria verdade como princípio.

Encerramos a Brado com orgulho e gratidão a tudo que fizemos nesses três anos de história e dedicação ao jornalismo e à democracia. Durante a pandemia, naquele momento angustiante de isolamento, de medo, quando a morte pairava sobre nossos lares, não é exagero dizer que a Brado nos deu motivação para viver.

Aos nossos colaboradores, de hoje e de ontem, o nosso muito obrigado por toda dedicação e por acreditarem em nosso projeto desde o começo, quando tudo não passava de uma vaga ideia. Foram essas mãos corajosas e um pouco obcecadas pela escrita, pela verdade e pela justiça que tornaram esta revista possível.

Aos nossos leitores, a nossa eterna gratidão. A Brado foi feita para vocês, que ao longo desses anos não apenas consumiram os nossos conteúdos, mas interagiram conosco, teceram elogios e críticas, nos fizeram refletir. Quantos fiéis leitores nós tivemos a honra de receber, depois, como colunistas, em um dos processos seletivos que fizemos?

Não existe jornalismo sem democracia nem democracia sem jornalismo. E não existe jornalismo sem público.

Muito obrigado a todos!

Até breve!

Como um último protesto desta revista, a Brado repudia veementemente a conduta criminosa dos policiais militares que amarraram um homem negro e o arrastaram para a viatura em posição de quem é torturado no pau-de-arara na Unidade de Pronto Atendimento da Vila Mariana, em São Paulo. O caso ocorreu no último domingo (4) e repercutiu na terça-feira. Nada justifica essa atuação truculenta, humilhante e covarde.

Uma constante em nossos editoriais ao longo desses três anos de atuação, as polícias militares brasileiras seguem se comportando como organizações criminosas quando os alvos são pessoas pretas e pobres. Esse é o Brasil que deu errado, contra o qual sempre lutamos e o qual, infelizmente, a Brado não teve tempo de ver derrotado. O Estado precisa punir de maneira exemplar os policiais envolvidos em mais essa barbaridade.

Este texto representa toda a equipe da Revista Brado.

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Uma última vez: muito obrigado!

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