Quando um negro pede socorro, tapam-se os olhos e os ouvidos

Na véspera do Dia da Consciência Negra, homem negro é espancado até a morte em supermercado no Rio Grande do Sul

Revista Brado
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4 min readNov 21, 2020

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João Alberto foi espancado e asfixiado até a morte em estacionamento de supermercado, tudo por conta de um gesto. Imagem: Arquivo Pessoal

“Eu não consigo respirar”: sem sombra de dúvidas, a frase que marcou o ano de 2020, proferida em maio por George Floyd, homem negro, morto asfixiado por policiais, em Minneapolis, nos Estados Unidos.

Na última quinta-feira (19), a frase foi ouvida novamente, desta vez em Porto Alegre, RS. Mais uma vez um grito de socorro, mais uma vez saindo da boca de um homem negro, mais uma vez saindo da boca de mais uma vítima de racismo.

João Alberto Silveira de Freitas, homem negro, 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças, no estacionamento de um supermercado da Rede Carrefour, na cidade de Porto Alegre, RS. O motivo do crime, segundo a esposa de João Alberto, foi um gesto: um simples aceno, que João havia feito para uma funcionária do estabelecimento.

Millena Borges Alves, que estava casada com João Alberto há nove anos, contou em entrevista ao UOL que o casal tinha ido ao supermercado — localizado a cerca de 600 metros de sua residência — para fazer algumas compras de alimentos, e quando estavam se dirigindo ao caixa para efetuar o pagamento, o marido, que sempre foi muito brincalhão, acenou para uma fiscal do supermercado, que chamou outros seguranças. A partir daí o homem foi perseguido, espancado e morto.

Os agressores são Magno Braz Borges, e Giovane Gaspar da Silva, de 24 e 30 anos, respectivamente. Magno é policial militar e estava trabalhando como segurança no supermercado na noite do crime; Giovane trabalhava como segurança do estabelecimento. Ambos foram presos em flagrante e serão indiciados por homicídio doloso, quando há intenção de matar.

Enquanto um dos agressores tentava imobilizar João Alberto, o outro desferiu socos contra a vítima, enquanto isso testemunhas assistiam ao ato sem fazer nenhuma interferência. Foto: Reprodução

O crime foi assistido por espectadores que estavam no local e não fizeram nada além de filmar todo o acontecimento. Por exatos 5 minutos e 20 segundos, João Alberto pediu socorro, e nenhuma das pessoas presentes no local sequer tentou atender às súplicas do homem.

O que aconteceu neste caso foi o mesmo ocorrido em todos os casos de racismo que tomaram conta da mídia ao longo de 2020; de João Pedro a George Floyd, de Gabriel a João Alberto, os pedidos de socorro foram totalmente ignorados. Quando o pedido de socorro vem de uma pessoa preta, os algozes tapam os olhos e os ouvidos.

A cena do assassinato repercutiu nas redes sociais e na mídia, gerando revoltas em todo o Brasil. Exatamente em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, data que marca as lutas raciais no país. No dia em que a beleza, a cultura e a resistência do povo preto deveriam ser exaltadas, o país foi forçado a ver a cena lamentável de um homem negro sendo espancado, reverberando uma herança da época escravocrata, que pôs negros como inferiores.

As manifestações e atos do Dia da Consciência Negra transformaram-se, inflamados pela indignação ocasionada pelo ocorrido. Viraram protestos e invasões a supermercados pertencentes à Rede Carrefour em todo o Brasil.

Em protesto pela morte de João Alberto, manifestantes depredam unidade do Carrefour localizada na cidade de São Paulo. Foto: Leo Orestes

O supermercado emitiu nota de repúdio, tendo o próprio CEO da empresa se manifestado em suas redes sociais, se colocando contra o ocorrido. A rede também prometeu destinar todos os lucros do dia 20 de novembro a instituições que atuam na luta contra o racismo.

Entretanto, estas atitudes são poucas quando se leva em conta a conduta dos funcionários, deixando claro o risco que pessoas negras correm ao simplesmente irem a qualquer um dos supermercados pertencentes à rede. O que se espera é um treinamento que qualifique os funcionários para saberem lidar com pessoas diversas transitando dentro do estabelecimento; é inadmissível que corpos negros não possam transitar em segurança dentro de locais de uso compartilhado.

Como se não bastasse o show de absurdos deste doloroso Dia da Consciência Negra, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, e o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo — que também é um homem negro –, disseram que o racismo no Brasil não existe e que não foi essa a motivação da morte de João Alberto.

“Não. Para mim, no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil, não existe aqui”, disse o vice-presidente em entrevista no Palácio do Planalto.

Seria uma realidade perfeita se o que foi dito pelo vice-presidente fosse real e em nosso país não mais houvesse o racismo que tanto fere e mata. Entretanto, a fala dele não tem nada de verdadeira, e negar a existência do racismo só abre brechas para que mais casos continuem acontecendo e que mais negros e negras sejam mortos com tamanha brutalidade, como foi no caso de João Alberto.

Em respeito à memória de João Alberto, a imagem que estampa este editorial não é a do crime. Não queremos repercutir mais uma vez toda a dor e angústia presentes naquele vídeo. Ele precisa ser lembrado com a dignidade que não lhe concederam ao tirarem sua vida.

Esta revista se solidariza com os familiares e amigos de João Alberto e repudia qualquer ato de racismo, sobretudo quando expresso sob a forma da violência física e da brutalidade. O que ocorreu na última quinta-feira é mais um dos tantos casos que ocorrem todos os dias na periferia de todo o país contra homens e mulheres negros; é o reflexo de uma sociedade fundada e perpetuada no racismo. Encerrar este ciclo é um compromisso de todos.

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