Elon Musk pode ser bom para o Twitter

E para o debate público também

João Vitor Castro
Revista Brado
10 min readApr 28, 2022

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Foto: Getty Images

N a última segunda-feira (25), o homem mais rico do mundo, o bilionário sul-africano Elon Musk, anunciou que está na fase final da negociação para se tornar dono da rede social Twitter. O CEO da Tesla e da SpaceXé o maior acionista da rede desde o começo de abril, mas não tem poderes administrativos sobre ela — função que hoje cabe a um conselho administrativo. Com o novo passo, Musk quer adquirir, por US$ 44 bilhões, todas as ações do Twitter e fechar seu capital, ou seja, retirá-la da bolsa de valores, tornando a rede propriedade inteiramente sua.

O interesse do bilionário pela bigtech é antigo e pessoal. Musk já teve diversos tweets excluídos pela rede social, a maioria porque ela interpretou que ele promovia discursos com a finalidade de manipular o mercado e aumentar o valor das ações de suas empresas ou produtos de forma ilegítima. Desde então, o empresário tem defendido a redução da moderação de conteúdo por parte do Twitter, a restringindo ao que está escrito nas leis de cada país em que a rede opera. Musk se diz um libertário, defensor absoluto da liberdade de expressão — até os seus limites mais perigosos do ponto de vista tradicional do liberalismo.

A compra do Twitter por parte do bilionário gerou fortes reações. Grupos de extrema-direita no Brasil e outras partes do mundo que eram alvos constantes das políticas de moderação da empresa celebraram o anúncio, defendendo que agora a rede será mais “livre” e que o risco de que seus perfis sejam punidos ou banidos será menor. De outro lado, grupos de esquerda e centro lamentaram, considerando que a rede tende a se tornar um ambiente ainda mais tóxico, mais permissivo com opiniões racistas, misóginas, xenofóbicas, LGBTfóbicas e autoritárias. Será mesmo?

Para continuar de forma organizada, vamos dividir este texto em duas partes: a primeira explorando de forma factual os interesses anunciados por Elon Musk no Twitter e as expectativas dos dois lados do debate; a segunda abordando — humildemente e sem intenção de pregar certeza — o que talvez seja a questão mais importante do nosso tempo: a natureza, a organização e o papel das redes sociais. Aperte o cinto do seu foguete ou do seu carro elétrico. Vamos viajar.

Em 2018, a SpaceX, empresa de viagens espaciais de Musk, lançou ao espaço um tradicional carro vermelho Tesla Roadster, da empresa de carros elétricos do bilionário. Foto: Divulgação

O que afinal quer Elon Musk?

Em seu anúncio de aquisição do Twitter, Musk citou algumas de suas intenções ao adquirir a empresa. A mudança mais polêmica, é claro, é o desejo de reduzir ao máximo a moderação de conteúdo por parte da rede, mas essa vamos deixar para a segunda parte. As questões principais, e que não têm recebido a devida atenção, são a abertura do sistema que rege o algoritmo da rede e a intenção de ampliar a autenticação dos usuários. Vamos por partes.

Até o usuário mais leigo do Twitter percebe que a rede social está bem longe de ser um ambiente pacífico e saudável. Absolutamente tudo que é publicado é passível de se tornar alvo de críticas — das mais justas — e ataques — dos mais delirantes. De um tweet do filho do presidente da República ironizando a tortura sofrida por uma jornalista a uma foto de sorvetes caros comprados por um pai anônimo para presentear sua filha, tudo se torna em poucos segundos palco de debates acalorados e muito — muito mesmo — agressivos.

O motivo disso é relativamente simples no caso do Twitter. Seus próprios administradores já reconheceram que o seu algoritmo — o sistema tecnológico que decide o que será mais ou menos visto por cada usuário — privilegia conteúdos ofensivos e agressivos, embora afirmem não saber o motivo. Politicamente, a extrema-direita é a mais privilegiada. Teorias conspiratórias se espalham numa velocidade impressionante. Pela própria natureza dos algoritmos, cada usuário passa a receber mais conteúdos do que ele interage — positiva ou negativamente. Fechados em bolhas, assumimos que aquela realidade moldada especialmente para nós é a realidade completa. Criamos laços identitários. Nos radicalizamos. O resto — infelizmente — já sabemos.

A invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 foi um dos momentos em que o mundo assistiu ao poder destrutivo da radicalização fomentada em bolhas sociais. Enquanto a imensa maioria da sociedade norte-americana acompanhava mais um processo eleitoral da sua longeva democracia, uma parcela minoritária, mas muito radicalizada, entendeu que para salvar o país de uma conspiração era preciso fazer o que nunca antes havia sido feito: invadir e depredar o maior símbolo político do país. Foto: Samuel Corum/AFP

Ler algoritmos é tarefa árdua, exclusiva para profissionais. Jornalistas que quiserem se aventurar nessa área, é bom antes se especializarem em análise de dados — e mesmo assim vão ter dificuldade. Mas o acesso liberado para profissionais programadores já levaria a um diálogo com jornalistas e comunicadores para explicarem ao público mais leigo como nossos dados são manipulados para alimentar esse algoritmo — afinal, é assim que o jornalismo tradicionalmente opera, não é? Em palavras mais diretas, a liberação do sistema dos algoritmos nos permitiria, no mínimo, entender como somos manipulados.

Hoje esse acesso não é liberado, mas Elon Musk promete liberar quando se tornar dono da empresa. No mínimo isso leva ao citado no parágrafo anterior. E isso por si só já significa muito. Entender como os impostos comem nossa renda não nos permite burlá-los, mas nos permite administrar melhor nossas finanças. Com os algoritmos é a mesma coisa. Entender como operam e ter a consciência de que estamos envoltos numa manipulação generalizada nos permite adotar certos cuidados e estratégias. No limite, nos permite pressionar da forma correta e tocando nos pontos exatos por mudanças — para nos tornar mais livres, mais donos dos nossos próprios dados.

Já a autenticação de usuários significa que cada conta será vinculada à identidade de uma pessoa. Como isso seria feito? Ainda não sabemos. Mas não é raro que tenhamos que deixar nosso CPF em sites de todos os tipos para conseguir acessá-los. Identificação facial também é usada por alguns aplicativos. Há várias formas de se ter a garantia de que o usuário em questão é um ser humano. E essa é uma das intenções de Elon Musk.

À primeira vista pode soar um pouco assustador. Um conforto ímpar das redes sociais é a garantia de que, se quisermos, podemos ser anônimos. Podemos ter infinitas contas diferentes na mesma rede social. Podemos nos passar por quem quisermos. Podemos fazer isso para montar um fã clube para o nosso ídolo musical e também podemos fazer isso para criar uma rede de intriga, ódio e desinformação capaz de decidir o resultado de uma eleição. Tem um lado inocente, mas também tem um lado muito, muito perigoso.

Foto: Possessed Photography/Unsplash

A autenticação dos usuários tem potencial para acabar com um grande problema das redes sociais: os bots. Aqueles perfis controlados não por pessoas, mas por softwares programados para passar o dia gerando conteúdo com interesses muito claros e determinados. São esses perfis que, se bem articulados por campanhas políticas, mudam pleitos, tornam o ambiente mais polarizado e violento, atiçam pessoas reais a tomarem decisões que têm colocado em risco a democracia liberal em todo o Ocidente.

Este texto não busca de forma alguma supor boas intenções por parte de Elon Musk, o bilionário cuja fortuna familiar nasceu da exploração de diamantes do continente africano e que protagoniza algumas das polêmicas mais antiéticas da internet. Mas de boas intenções o inferno está cheio e de intenções não tão puras os carros elétricos e carbono-neutros foram enfim popularizados na Europa pela Tesla Motors. Supor que Elon Musk, apenas por ser um bilionário — como também são os donos atuais do Twitter — e pelas suas ideologias profundamente questionáveis, vai tornar a rede social pior é de uma simplificação que simplesmente não cabe neste debate.

Agora vamos à questão mais profunda.

O que são as redes sociais?

Quando surgiram, Twitter, Facebook, Instagram e as demais gigantes da comunicação da nova era se classificavam como meras empresas de tecnologia, ambientes neutros que comportam toda sorte de conteúdos sem se responsabilizar por eles. Em tese, cada usuário seria responsável pelo que publica nas redes, e em caso de infrações legais, seria o usuário, e não a rede social — dada essa sua natureza — que deveria ser responsabilizado por seus atos.

Acontece que, ao definir o que pode e o que não pode ser veiculado com base em políticas internas de moderação de conteúdo, essas empresas passam a ter funções editoriais. Funções semelhantes à que a imprensa já teve em outros tempos, de decidir o que será ou não pautado, quais informações serão ou não divulgadas. Os anjos tronchos do Vale do Silício — para não deixar de citar Caetano — passaram a ser gatekeepers do debate público. Mas quem os conferiu essa legitimidade?

A figura do gatekeeper (em português, porteiro) no jornalismo vem da teoria desenvolvida por David Manning White na década de 1950, que define o jornalista como um porteiro que seleciona, entre todas as pautas que chegam à redação, quais passam pelas cancelas, ou seja, o que se torna e o que não se torna público. Na foto, as cancelas da tradicional sede do jornal Folha de S. Paulo na Alameda Barão de Limeira, Centro de São Paulo. Foto: Wikimedia Commons

Após a tentativa de invasão do Capitólio por apoiadores do ex-presidente Donald Trump, o Twitter baniu o republicano da plataforma, com base em tweets que espalhavam desinformação ou estimulavam o extremismo. Naquele momento, a imensa maioria dos defensores da democracia liberal celebraram a exclusão de Trump, afinal, a maior e mais antiga democracia do planeta estava sendo atacada como nunca antes em mais de dois séculos. Mas é preciso jogar por terra de uma vez por todas o entendimento de que as redes sociais são meras empresas privadas que — desde que obedeçam as leis — podem criar suas próprias regras e definir quem pode ou não falar.

As redes sociais são a praça pública do século XXI. Embora o banimento de alguém do Twitter não restrinja legalmente o seu direito de se expressar, o restringe na prática. Se o ex-presidente norte-americano — de quem discordo e a quem repudio em gênero, número e grau — cometeu crimes na internet, ele deve ser julgado pelos tribunais e responder pelo que disse. Posteriormente ao dizê-lo. Punir uma pessoa por falas já concebidas que infringem a lei condiz com a prática democrática; proibi-la de se expressar para evitar que cometa crimes, não. O que estamos fazendo desde 6 de janeiro de 2021 é normalizar a censura prévia por parte de multinacionais do Vale do Silício. Estamos conferindo a meia dúzia de bilionários funções que cabem ao Estado — e muitas vezes nem a ele. Hoje elas estão — apenas na superfície — do lado da democracia. E amanhã?

O jornal O Globo, pouco após o banimento de Trump do Twitter, publicou um editorial certeiro, em que alertava que:

“Regular o discurso não é uma tarefa trivial. De todo modo, há uma distância enorme entre a permissividade, que deu a Trump, Bolsonaro e outros líderes a oportunidade de comandar impunes movimentos extremistas, e a proibição de acesso pura e simples. A liberdade de expressão deve justamente proteger as opiniões mais estapafúrdias. Ninguém precisa de proteção para falar aquilo com que todos concordam. Em qualquer meio, portanto, só é razoável restringi-la quando houver violação clara da lei: incitação à violência, conspiração criminosa, calúnia, injúria, difamação, etc.”.

Não questiono aqui e nem afirmo a possibilidade legal de que as bigtechs moderem conteúdos para além das fronteiras legais. Este não é um texto voltado para o Judiciário, mas para o Legislativo. São os nossos representantes políticos, os nossos especialistas do jornalismo, da comunicação como um todo, da programação e do direito que devem se debruçar sobre estratégias para tornar as redes ambientes mais saudáveis e seguros, e não as plataformas de forma monocrática. Mais uma vez, o Twitter e o Facebook não são empresas como a Coca-Cola, a padaria da sua rua ou mesmo o The New York Times. Seus produtos — a informação e os dados de bilhões de seres humanos — não reconhecem fronteiras. São fluidos. Precisamos de uma nova forma de entendimento sobre a natureza, a operação e a fiscalização dessas plataformas, diferente de tudo que conhecemos até aqui. Como fazê-lo? Bem, quem sou eu para sequer supor ter a resposta para isso?

Mas há ideias. Algumas delas já foram abordadas aqui na Revista Brado. Ao final deste texto será anexado um artigo de fevereiro de 2021 do editor de Justiça Rodolfo Nascimento que aborda a polêmica envolvendo a exclusão da conta de Donald Trump do Twitter e oferece ao fim algumas alternativas de adaptação do Estado para administrar esse desafio novo e urgente de descobrir como lidar adequadamente com as redes sociais.

Em sua obra “A era do capitalismo de vigilância”, a professora de Harvard Shoshana Zuboff abre um questionamento importante:

“Essas empresas que floresceram nas últimas duas décadas, com quase nenhum impedimento legal, agora têm um poder profundo e inexplicável: controlar de forma absoluta os sistemas e infraestruturas de informação dos quais a nossa civilização atual, a civilização da informação, depende. Por isso, as iniciativas de diversos países para adequar a atuação das redes sociais às práticas democráticas têm uma importância transcendente”.

É possível sim — e até provável — que a redução drástica da moderação de conteúdo, aliada à abertura do algoritmo e à autenticação de usuários, promova de imediato uma piora no ambiente do Twitter. Ele vai se tornar mais permissivo, inclusive com opiniões criminosas. Mas se Elon Musk cumprir sua promessa de restringir a moderação às leis de cada país, o que ele estará fazendo na prática é retornar o Twitter ao seu ponto de inflexão: ele poderá voltar a ser — se é que um dia já foi — uma empresa de tecnologia, e não mais um gatekeeper pós-moderno.

A longo prazo, isso vai incentivar políticos, especialistas e juristas de todos os países a se mobilizarem para fazer o que já deveriam estar fazendo há mais de uma década: remodelar o entendimento sobre as gigantes da tecnologia e readequá-las às suas leis nacionais. O Estado vai reassumir o seu papel. Se no curto prazo as consequências tendem a ser negativas, no longo isso pode garantir que as decisões sobre o que eu e você publicamos na internet voltem a ser tomadas nos prédios de Brasília, e não mais nos escritórios do Vale do Silício.

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João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).