Entre 1970 e 2020: o que esperar da nova constituição chilena?

Gustavo Dantas
Revista Brado
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4 min readNov 2, 2020

A última semana foi marcada por um passo importante no Chile, que enterrará de vez a constituição de Pinochet

O ano de 2019 foi marcado por intensos protestos no Chile. Na faixa: “O poder reside nas pessoas. Assembleia Constituinte". Foto: Reprodução/El Clarín

No último dia 25, o Chile aprovou com 78% dos votos a criação de uma nova Constituição, que substituirá a atual, que é a mesma desde a ditadura de Augusto Pinochet. Desde 1980, com a queda do ditador, o Chile cresce e se transforma, mas carrega o fardo de uma política social enraizada na ditadura e em uma profunda desigualdade social.

A análise dos dados apresentados pelo relatório “Desiguales. Orígenes, cambios y desafios de la brecha social en Chile”, escrito pela PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e publicado em 2017, explicita a necessidade de uma nova constituinte no Chile.

Na tabela, é possível visualizar o nível das classes, pelo nível de escolaridade e renda per capita, bem como a porcentagem que representa essa camada da população. Via: Desiguales. Orígenes, cambios y desafios de la brecha social en Chile

O país, segundo os dados disponibilizados pelo livro, em 2015, possui mais de 75% da população com uma média de renda per capita três vezes menor que os outros 25% da população e quase cinco vezes menor que os 10% mais ricos da população. Além disso, quanto à escolaridade, a população periférica costuma estudar por apenas 10 anos, enquanto o restante, em sua grande maioria, termina a primeira parte escolar, chegando à graduação.

Índice GINI (que mensura a desigualdade em um país de 0, sem desigualdade alguma e 1, extremamente desigual) no Chile entre 1990 e 2015. Via: Desiguales. Orígenes, cambios y desafios de la brecha social en Chile

Essa desigualdade tem diminuído gradativamente ao longo dos últimos 30 anos, fazendo com que o índice GINI, fosse de 0,55 em 2000 para 0,47 em 2015. Essa diminuição foi essencial para um país que passava por um processo de restruturação pós-ditadura, mas ainda é o sétimo país mais desigual da América Latina.

Assim como na história brasileira, tudo começa com uma colonização, porém liderada pela Espanha, que retirou tudo de mais precioso que havia e escravizou os indígenas que ali habitavam. Mas o período marcado pela luta por direitos se inicia em 1930, devido sobretudo à crise de 29, quando as classes altas perderam o monopólio do poder político e dos recursos econômicos e as classes médias aumentaram tornando-se um grupo central na sociedade. O número de cidadãos votantes subiu de 21% em ___ para 75% nas eleições de 1970, abrindo espaço para pautas mais sociais e de maior representatividade para a população operária, tudo isso em um intervalo de 40 anos. Nesse momento, o país presenciava uma das maiores evoluções políticas de sua história.

Esse momento também foi responsável por grandes medidas consideradas populistas, de forma que o Estado forneceu transferências de rendimentos e serviços de saúde e educação a segmentos majoritários da população, o que ajudou a moderar a desigualdade, além da criação de fundos que amparavam o trabalhador, como o Fundo de Segurança Social, que servia os trabalhadores e cobria 45% da mão-de-obra (similar ao INSS brasileiro).

Palácio La Moneda, em Santiago, é atacado por soldados em 1973. Foto: ATP/Getty Images

Em 1973, influenciado por outros países sul-americanos e financiado pelos EUA, um golpe militar pôs em cheque todos os ganhos sociais obtidos desde 1930. Muitos autores consideram que o país experimentou uma transformação econômica e social radical que teve efeitos significativos na estrutura da desigualdade, porque redefiniram as regras para o funcionamento da economia e, consequentemente, produziu uma mudança drástica entre trabalhadores e empregadores, seguida de grandes privatizações de estatais. Assim como na ditadura brasileira, a classe empresarial foi a mais beneficiada durante a ditadura de Pinochet.

A história socioeconômica chilena é marcada por altos e baixos, tendo sua maior mudança social e democrática até os anos 70, e surpreendida com novos índices de desigualdades por conta da ditadura. Ela em si é enraizada na distribuição desigual de terras no século XVII, que tiveram como beneficiados os brancos e militares cristãos. No século XX, o problema era muito mais ligado à falta de desenvolvimento do que a problemas de distribuição, mas era minimizado com a luta por saúde e educação dignas, que tornou possível um enorme avanço nas condições de vida dos setores médio e popular. Aumentou significativamente os seus rendimentos através de pensões, salário mínimo, abono de família e outras transferências de rendimentos — mudanças essas que foram interrompidas pela ditadura.

A escolha popular para a criação de uma nova constituinte representa uma ponte com o que vinha sendo feito até a década de 70; é um marco político democrático grande na América Latina como um todo. A possibilidade de escrever uma nova constituição nos parâmetros atuais cria um desafio de construir uma sociedade tranquila e pacífica. Além disso, ela influencia fortemente em outros aspectos.

A atual constituição restringe os poderes do Estado, de forma que ele não possui força em áreas importantes, tal como a exploração de recursos naturais e a terceirização do ensino. A possibilidade de mudança e atribuição disso ao Estado pode o tornar mais forte. A maioria acredita que não acabará com os problemas existentes, porém será um passo icônico para a restauração social do país.

O que nos resta é esperar e acompanhar o ano que vem e ver como será montada, após a eleição dos 155 representantes, torcendo por uma constituição mais condizente com os valores atuais, oferecendo assim um passo importante não apenas para o Chile, mas para toda a América Latina, profundamente marcada pela desigualdade e pela carência de serviços sociais básicos.

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Gustavo Dantas
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais, colunista da revista Brado