Cesar MC: o rap que faz chorar
Do Morro do Quadro, em Vitória, capixaba busca cravar mensagens de igualdade social
Difícil esquivar de alguma das referências usadas pelo capixaba Cesar MC em suas músicas. A morte do menino João Pedro Matos e o caso do músico baleado mais de 80 vezes pela polícia, ambos no Rio de Janeiro, são só duas das inúmeras histórias de violência que o rapper resgata em versos pra lá de sangrentos. Assim que venceu a Batalha Nacional de MC’s, em 2017, resenhas e tweets emocionados falavam sobre a crueza com que o jovem nascido no Morro do Quadro, em Vitória, narrava fatos tão profundos para o povo negro.
Mas a carreira dele deu uma guinada mesmo com o lançamento do clipe “Canção Infantil”, no ano passado. O vídeo contabilizou, em menos de uma semana, cerca de 4 milhões de visualizações no YouTube. Na música, Cesar procura retratar o amadurecimento de uma criança em meio a essas histórias de violências — não dos contos de fadas, mas do mundo real. Sob a direção de Guilherme Brehm e do próprio MC, o clipe foi gravado no Palácio Sônia Cabral, em Vitória, com as crianças da Serenata Canto Coral e a participação da cantora Cristal.
Cesar MC, assim como poucos, faz questão de recuperar a imagem tão esquecida das periferias do Espírito Santo, que também sofrem por causa da truculência policial, o descaso do poder público e o preconceito. Confira abaixo uma entrevista com o rapper:
Quando você começou a escrever poesia?
Escrevo desde pequeno, mas sempre foi um momento íntimo — construía poesia e rimas improvisadas o dia inteiro, usando como desabafo. Não mostrava a ninguém. No final de 2014, eu vi pela primeira vez uma batalha de MC’s, na praça Costa Pereira, em Vitória. Quando vi aquela galera batalhando, foi o ponto de partida. Desde então, nunca mais parei de me envolver e mergulhar no mundo das batalhas… Foi muito tempo no anonimato, até que fui para o Duelo Nacional de MC’s, em 2017. Depois que ganhei a competição, comecei a me envolver de cabeça com a sonoridade das letras.
Mas você só ganhou destaque, de fato, com a “Canção Infantil”. Como foi o processo de produção?
Compus ela há bastante tempo, quando estava no meu terraço com uma caneta e Deus. Foi no momento em que eu estava refletindo, chorando, pensando sobre esse contraste da infância e desse processo de amadurecer em um mundo de dificuldades como o nosso... Por exemplo, ao mesmo tempo em que a criança vê Rapunzel e Pinóquio, assiste ao jornal e vê notícias chocantes. Isso é impensável. Essa música é sobre sofrimento, porém de uma forma mais profunda, com causa, consequência e perspectivas do que acredito ser a solução. Os contos infantis foram uma forma de ilustrar essas três ideias sob os olhos das crianças.
“Faço um trabalho que bate na tecla de todos os preconceitos, para conseguir transcender e solucionar a origem de tudo” — Cesar MC
Nas primeiras vezes em que você a apresentou, como foi a recepção?
Cara, eram muitas vozes representadas na letra. Todas elas sentiram muito forte, então entendi que precisava gritar mais alto. Daí surgiu a ideia de fazer uma música. Quis que a melodia não tirasse o sentimento do que a poesia crua já fazia, portanto passei por um processo muito trabalhoso, para conseguir fazer com que a letra gritasse tanto na música quanto à capela. Por isso fiz alterações, acrescentei dados, harmonizei, mas tudo focado no equilíbrio com uma musicalidade que conseguisse potencializar a mensagem.
Um assunto muito pontuado nas suas músicas é o racismo. Quais outras bandeiras podemos encontrar no seu trabalho?
Se fosse para resumir em uma palavra, a bandeira das minhas músicas seria “vida”. Mas só isso não basta. Faço um trabalho que bate na tecla de todos os preconceitos, para conseguir transcender e solucionar a origem de tudo. Não é para resumir somente a uma causa. É um protesto sobre a relevância da vida, algo que tem início, meio e fim, falando sobre uma perspectiva positiva. Mesmo que seja uma letra triste, quer pregar esperança. Por cima de todas as dificuldades, ainda existe o plano de Deus, que, na minha visão, caminha para a paz e para a mudança.
“A gente vê que o rap alcança corações e fala uma língua que muitos outros gêneros (sem diminuir qualquer outra cultura, claro) não alcançam dentro da periferia, com a cultura preta.”
E apesar do sucesso, você não abandona suas raízes. O Espírito Santo é muito presente em clipes e letras.
Não existe a possibilidade de fazer todo meu trabalho sem um vínculo real e sentimental. Essa comunidade é a minha casa, independentemente de qualquer coisa. Quem se envolveu no clipe compartilha desse sentimento e da minha vivência… Não tinha como dar voz ao lugar de onde vim sem os incluir no meu trabalho. As pessoas do clipe “Canção Infantil” são da minha comunidade, o Morro do Quadro. Não são atores. Todas aquelas crianças, de alguma forma, podem ser influenciadas pelo que produzo, então quero muito mostrar que sou exatamente igual a elas.
Você acredita que ainda existe preconceito em cima do rap e do hip-hop?
Parte da sociedade não consegue ver a profundidade do que é a cultura hip-hop. É um conhecimento que envolve várias possibilidades, e ela atua de uma forma muito singular na transformação do mundo em que vivemos. A gente vê que o rap alcança corações e fala uma língua que muitos outros gêneros (sem diminuir qualquer outra cultura, claro) não alcançam dentro da periferia, com a cultura preta. Então a forma que ela dialoga também é na luta contra o preconceito racial e as desigualdades sociais. Eu acredito que, para a gente quebrar um pouco desse preconceito com a cultura hip-hop, precisamos investir para que ela cresça, sabe? Também é importante quebrar um pouco dessa visão tão rasa, né, das pessoas que não conseguem entender a profundidade que existe dentro de uma cultura.
Cesar Resende Lemos, 23, nasceu e vive no Morro do Quadro, no Centro de Vitória. Filho de funcionário público e professora de Português, chegou a começar a graduação em matemática na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mas largou o curso para se dedicar totalmente ao hip-hop. E que sorte a nossa!
Atualmente, jovens, artistas independentes e apaixonados pela música têm como braço direito alguns versos do MC. Sua importância extrapolou as quatro paredes capixabas e ganhou o país, chegando em comunidades que buscam reconhecer o quão vitoriosas e inspiradoras são as pessoas que vivem dentro delas.
Aliás, como bem disse Cesar: “Se a favela vive, eu já não morro”.