Cesar MC: o rap que faz chorar

Do Morro do Quadro, em Vitória, capixaba busca cravar mensagens de igualdade social

Maria Fernanda Conti
Revista Brado
5 min readSep 20, 2020

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Cesar MC é um dos principais artistas capixabas com projeção nacional. Imagem: Chico Guedes/Metro

Difícil esquivar de alguma das referências usadas pelo capixaba Cesar MC em suas músicas. A morte do menino João Pedro Matos e o caso do músico baleado mais de 80 vezes pela polícia, ambos no Rio de Janeiro, são só duas das inúmeras histórias de violência que o rapper resgata em versos pra lá de sangrentos. Assim que venceu a Batalha Nacional de MC’s, em 2017, resenhas e tweets emocionados falavam sobre a crueza com que o jovem nascido no Morro do Quadro, em Vitória, narrava fatos tão profundos para o povo negro.

Mas a carreira dele deu uma guinada mesmo com o lançamento do clipe “Canção Infantil”, no ano passado. O vídeo contabilizou, em menos de uma semana, cerca de 4 milhões de visualizações no YouTube. Na música, Cesar procura retratar o amadurecimento de uma criança em meio a essas histórias de violências — não dos contos de fadas, mas do mundo real. Sob a direção de Guilherme Brehm e do próprio MC, o clipe foi gravado no Palácio Sônia Cabral, em Vitória, com as crianças da Serenata Canto Coral e a participação da cantora Cristal.

Cesar MC, assim como poucos, faz questão de recuperar a imagem tão esquecida das periferias do Espírito Santo, que também sofrem por causa da truculência policial, o descaso do poder público e o preconceito. Confira abaixo uma entrevista com o rapper:

Quando você começou a escrever poesia?
Escrevo desde pequeno, mas sempre foi um momento íntimo — construía poesia e rimas improvisadas o dia inteiro, usando como desabafo. Não mostrava a ninguém. No final de 2014, eu vi pela primeira vez uma batalha de MC’s, na praça Costa Pereira, em Vitória. Quando vi aquela galera batalhando, foi o ponto de partida. Desde então, nunca mais parei de me envolver e mergulhar no mundo das batalhas… Foi muito tempo no anonimato, até que fui para o Duelo Nacional de MC’s, em 2017. Depois que ganhei a competição, comecei a me envolver de cabeça com a sonoridade das letras.

Mas você só ganhou destaque, de fato, com a “Canção Infantil”. Como foi o processo de produção?
Compus ela há bastante tempo, quando estava no meu terraço com uma caneta e Deus. Foi no momento em que eu estava refletindo, chorando, pensando sobre esse contraste da infância e desse processo de amadurecer em um mundo de dificuldades como o nosso... Por exemplo, ao mesmo tempo em que a criança vê Rapunzel e Pinóquio, assiste ao jornal e vê notícias chocantes. Isso é impensável. Essa música é sobre sofrimento, porém de uma forma mais profunda, com causa, consequência e perspectivas do que acredito ser a solução. Os contos infantis foram uma forma de ilustrar essas três ideias sob os olhos das crianças.

“Faço um trabalho que bate na tecla de todos os preconceitos, para conseguir transcender e solucionar a origem de tudo” — Cesar MC

Nas primeiras vezes em que você a apresentou, como foi a recepção?
Cara, eram muitas vozes representadas na letra. Todas elas sentiram muito forte, então entendi que precisava gritar mais alto. Daí surgiu a ideia de fazer uma música. Quis que a melodia não tirasse o sentimento do que a poesia crua já fazia, portanto passei por um processo muito trabalhoso, para conseguir fazer com que a letra gritasse tanto na música quanto à capela. Por isso fiz alterações, acrescentei dados, harmonizei, mas tudo focado no equilíbrio com uma musicalidade que conseguisse potencializar a mensagem.

Um assunto muito pontuado nas suas músicas é o racismo. Quais outras bandeiras podemos encontrar no seu trabalho?
Se fosse para resumir em uma palavra, a bandeira das minhas músicas seria “vida”. Mas só isso não basta. Faço um trabalho que bate na tecla de todos os preconceitos, para conseguir transcender e solucionar a origem de tudo. Não é para resumir somente a uma causa. É um protesto sobre a relevância da vida, algo que tem início, meio e fim, falando sobre uma perspectiva positiva. Mesmo que seja uma letra triste, quer pregar esperança. Por cima de todas as dificuldades, ainda existe o plano de Deus, que, na minha visão, caminha para a paz e para a mudança.

“A gente vê que o rap alcança corações e fala uma língua que muitos outros gêneros (sem diminuir qualquer outra cultura, claro) não alcançam dentro da periferia, com a cultura preta.”

E apesar do sucesso, você não abandona suas raízes. O Espírito Santo é muito presente em clipes e letras.
Não existe a possibilidade de fazer todo meu trabalho sem um vínculo real e sentimental. Essa comunidade é a minha casa, independentemente de qualquer coisa. Quem se envolveu no clipe compartilha desse sentimento e da minha vivência… Não tinha como dar voz ao lugar de onde vim sem os incluir no meu trabalho. As pessoas do clipe “Canção Infantil” são da minha comunidade, o Morro do Quadro. Não são atores. Todas aquelas crianças, de alguma forma, podem ser influenciadas pelo que produzo, então quero muito mostrar que sou exatamente igual a elas.

Você acredita que ainda existe preconceito em cima do rap e do hip-hop?

Parte da sociedade não consegue ver a profundidade do que é a cultura hip-hop. É um conhecimento que envolve várias possibilidades, e ela atua de uma forma muito singular na transformação do mundo em que vivemos. A gente vê que o rap alcança corações e fala uma língua que muitos outros gêneros (sem diminuir qualquer outra cultura, claro) não alcançam dentro da periferia, com a cultura preta. Então a forma que ela dialoga também é na luta contra o preconceito racial e as desigualdades sociais. Eu acredito que, para a gente quebrar um pouco desse preconceito com a cultura hip-hop, precisamos investir para que ela cresça, sabe? Também é importante quebrar um pouco dessa visão tão rasa, né, das pessoas que não conseguem entender a profundidade que existe dentro de uma cultura.

Cesar Resende Lemos, 23, nasceu e vive no Morro do Quadro, no Centro de Vitória. Filho de funcionário público e professora de Português, chegou a começar a graduação em matemática na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mas largou o curso para se dedicar totalmente ao hip-hop. E que sorte a nossa!

Atualmente, jovens, artistas independentes e apaixonados pela música têm como braço direito alguns versos do MC. Sua importância extrapolou as quatro paredes capixabas e ganhou o país, chegando em comunidades que buscam reconhecer o quão vitoriosas e inspiradoras são as pessoas que vivem dentro delas.

Aliás, como bem disse Cesar: “Se a favela vive, eu já não morro”.

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Maria Fernanda Conti
Revista Brado

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Espírito Santo. Colunista de Cultura da Revista Brado.