Falar da morte é complicado

É como ter uma caixa cheia de papéis, notas fiscais e contas antigas no canto do quarto: a gente precisa olhar e limpar o que tem dentro, mas, às vezes, só queremos deixar guardado para não ter que lidar com o espaço vazio.

Beatriz Heleodoro
Revista Brado
6 min readJul 18, 2021

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Vovô Russo no seu lugar no sofá.

Durante os meus 20 anos de vida, me encontrei com a Morte poucas vezes. Não sei se há algum estudo que diz aproximadamente quantas mortes uma pessoa presencia na vida, mas sei que aprendi a lidar com ela ainda pequena.

Em 2007, perdi um amigo. Vizinho da minha avó, Davi era um menino simples — daquelas pessoas que te ensinam um tanto sobre a vida. Só o encontrava vestindo apenas bermuda ou blusa e cueca, sempre com uma coxa de galinha na mão e uma animação inesquecível para brincar quando a gente se via nas férias. Davi e seu tio morreram a caminho da praia atropelados por um caminhão. O motorista, que tinha tomado rebite — uma droga que mantém quem toma em estado de alerta — adormeceu no volante no final da tarde, perdeu o controle e tirou a vida dos dois. Como eles, 14 pessoas morrem por dia nas rodovias federais do Brasil, segundo dados de 2019 da Confederação Nacional do Transporte.

Em 2015, perdi meu avô. Seu Norival foi uma das pessoas mais especiais que já conheci. O velho Russo, como era conhecido, me amou como se eu fosse do seu sangue, mesmo sendo neta de consideração. Na chácara, vigiava eu e meus primos da janela do quarto e brigava toda a vez que a gente subia nas britas ou colhia algum fruto do pé com a foice sem avisar. Escondia os amendoins no guarda-roupa para comer sozinho e tinha seu próprio espaço no sofá — tão seu, que deixou um buraco no estofado. Em 2011, vovô foi diagnosticado com câncer de esôfago, sexto câncer mais frequente entre homens no Brasil. 4 anos depois, entre idas a hospitais e mudanças de rotina, faleceu. De acordo com o Instituto Nacional de Câncer (INCA), a estimativa para o triênio 2020 — 2022 é de que sejam diagnosticados mais 11.390 casos de câncer de esôfago no Brasil.

Em 2019, perdi meu tio. Foi a última vez que me encontrei tão próxima da Morte. Ele era professor do curso de Farmácia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), viajava quase que todo mês, preparava a melhor salada que já comi e vivia trancado no quarto, ouvindo a Rádio Tropical FM no volume mais alto — sempre pronto para me levar pra casa ou me atender quando eu batia à porta. Talvez seja porque viajava tanto, que essa visita tão rápida da Morte me fez sentir como se ele ainda estivesse em São Paulo, no Chile ou em outro lugar que costumava ir. Meu tio ficou alguns dias na UTI por causa de uma hepatite medicamentosa. No laudo médico, foi devido a um choque séptico que ele se foi. Sendo uma compilação mais grave da sepse, que foi reconhecida em 2017 pela OMS como um problema de saúde mundial, com 31 milhões de casos por ano e mais de 6 milhões de mortes.

Dos sete aos vinte anos, então, tive que aprender a lidar com a Morte e da sua causa por razões diferentes. Comecei a ir para a praia por outro caminho e quando tinha que ir pela estrada onde Davi foi atropelado, andava mais depressa e com mais cuidado, vigiando se tinha carro vindo. O sofá que meu avô sentava foi reformado, não tem mais aquele espaço só dele e também não tive mais que me preocupar se ele brigaria caso subíssemos em cima das britas — já não tem mais quem as coloque ali. Posso fazer minha própria salada e não tenho mais que bater na porta do quarto do meu tio para entrar, ela está aberta e não tem mais nenhuma música tocando mais.

Como válvula de escape, fui me esquecendo de tudo aquilo que envolvia a Morte dos que se foram. Tive que perguntar à minha família porque Davi não ouviu o caminhão se aproximando, qual era o câncer do meu avô, como foi que meu tio foi parar na UTI. Afinal, a Morte chega e te derruba, só que a vida continua. E talvez seja esse problema. A vida continua, sem Davi indo para a praia, meu avô vigiando da janela ou meu tio me levando para casa. Então, para continuar, preferi guarda-los naquela caixa de papéis, notas fiscais e contas antigas, para não ter que lidar com o vazio de não os ter mais presentes. Caminho naquela mesma praia, os pés de cacau e de jambo continuam dando frutos e posso chamar um Uber quando preciso ir pra casa.

Durante esses meus 20 anos de vida, eu e a Morte ficamos cara-a-cara apenas três vezes. Há pouco mais de um ano, porém, as mortes em decorrência da Covid-19 no Brasil começaram a fazer parte da pauta diária dos telejornais que assisto. No dia que comecei a esboçar esse texto, em 29 de abril de 2021, o país atingia a marca de 400 mil vidas perdidas. Ao finalizá-lo, dia 17 de julho de 2021, esse número ultrapassou 541 mil óbitos. Desde a primeira morte em 12 de março de 2021, de Rosana Urbano, a sensação é de que os números aumentam e o meu papel como jornalista é apenas anotar: mais um, mais um e mais um, até ter um amonte total para divulgar no Jornal Nacional no fim do dia. A cada dia que chega, porém, a impressão que passa é de que esses números que chegam diariamente às casas de milhares são zerados, dando lugar a outras milhares de morte que serão noticiadas.

Em 80 dias, mais de 141 mil pessoas se foram. Mais de 141 mil vizinhos, avôs e tios. Pessoas que deixaram vazios como os que eu venho sentindo desde os sete anos — e que não vão mais à praia, não ocupam mais seus lugares no sofá, não escutam música alta. Nas últimas 24 horas, 823 pessoas morreram, segundo levantamento feito pelo Consórcio de Veículos de Imprensa do país. De acordo com a média móvel dos últimos 15 dias, 1.196 pessoas são mortas pela doença por dia.

O fato é que essas mortes são diferentes do que as do Davi, do meu avô e do meu tio — e que fique claro que não estou reduzindo suas passagens. Talvez se Davi não tivesse ido à praia ouvindo música no seu mp3 novo, teria escutado o caminhão se aproximar. Talvez se meu avô não tivesse fumado ou bebido, não teria tido câncer. Talvez se meu tio tivesse ido mais cedo ao médico, não teria que ter ido à UTI. Mesmo assim, motoristas de caminhão continuam dirigindo sob efeito de rebite e outras drogas anfetaminas pelas estradas do país. Tabagismo e ingestão bebidas alcoólicas ainda são fatores de risco para o desenvolvimento do câncer de esôfago. O choque séptico ainda é definido como a “evolução do quadro do paciente com Sepse” e ainda é um problema mundial. E mesmo se não tivesse sido com eles, as estatísticas estão aí, as porcentagens vão mudando, mas não zeram. Então, se de alguma forma as coisas acontecem porque tem que acontecer, aconteceu e eles se foram.

Acontece que, diante da pandemia da Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro rejeitou ofertas de cerca de 70 milhões de doses da vacina Pfizer, que poderiam ter sido entregues em dezembro de 2020. No dia 31 de dezembro de 2020, o país contabilizou 194.976 óbitos. Dessa data até hoje, mais 346.347 vidas se foram. Num cenário onde há vacinas que podem e salvam vidas, nenhuma morte tem propósito ou simplesmente acontece. Todas — ou a grande maioria — poderiam ter sido evitadas. Sem “talvez”, se essas vacinas tivessem sido compradas quando foram oferecidas no ano passado; se o Governo tivesse investido em uma campanha oficial contra a doença — que reforçasse o isolamento social e as medidas de segurança; se o presidente não tivesse se referido à doença como uma “gripezinha” ou não tivesse imitado pessoas com falta de ar… grande parte dos brasileiros que perderam vizinhos, tios e avôs não teriam que lidar hoje com o vazio que a Morte deixa, muito menos com a angústia de assistir quem os governa não fazendo nada para que esse vazio não atormente mais ninguém.

Falar da Morte é complicado porque amanhã novas centenas de vítimas da Covid-19 no Brasil serão contabilizadas nos jornais.

Falar da Morte é complicado porque, às vezes, ela pode ser evitada — mas muitas não foram.

Para Davi, Vovô Russo e Tio Neudo, que continuam vivos em meu coração.

Para Rosana e todas as vítimas da Covid-19 no Brasil, que nunca serão esquecidos.

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